sábado, 24 de junho de 2017

Apontamentos: Sturtevant 2016 - cota de habitação social nos EUA

STURTEVANT L, “Separating Fact from Fiction in Research on Inclusionary Housing Programs”. National Housing Conference May 2016.
https://www.nhc.org/wp-content/uploads/2017/10/Separating-Fact-from-Fiction-to-Design.pdf


Interior do National Building Museum
Washington D.C.
Um feliz acaso me encontrou em Washington DC por ocasião da palestra “Separating Fact from Fiction to Design Effective Inclusionary Housing Programs”[1], proferida no National Building Museum pela pesquisadora norte-americana Lisa Sturtevant. Seu conteúdo pode ser acessado pelo leitor em artigo recém-publicado pela autora sob o mesmo título.[2]

O marco mais geral da exposição, objeto das palavras de abertura, foi um revelador apanhado estatístico da relação cada vez mais crítica entre a renda das famílias e os gastos de aluguel nas grandes cidades norte-americanas - um inequívoco efeito, creio, do aumento consistente da pobreza relativa e absoluta no país, catapultado pelo estouro da bolha imobiliário-financeira em 2007-8.

"Cota de habitação social" e "cota de solidariedade” são termos brasileiros para o instituto norte-americano do Inclusionary Housing (IH), um instrumento de política habitacional que consiste na imposição legal ao incorporador imobiliário, ou incentivo mediante compensações normativas e fiscais, de que certa porcentagem do total de unidades residenciais construídas em um empreendimento corresponda a produtos mais baratos - e menos rentáveis - do que aqueles que a demanda estaria propensa a adquirir naquela localização. Ele atua pelo duplo viés da oferta privada de unidades de habitação social e da integração sócio-espacial das famílias adquirentes.

A aplicação e o desenho dos programas de IH são prerrogativas dos governos locais, portanto bastante variados. Em algumas localidades, a exigência de unidades IH depende do tamanho do empreendimento; em outras, os empreendedores têm a opção de recolher valor correspondente ao custo do IH a um fundo de financiamento de habitação social; outras mais o aplicam em troca de compensações, como acréscimos de densidade (edificabilidade), flexibilização de parâmetros edilícios e isenção de taxas.

Apesar de inexistirem estatísticas seguras do total de unidades produzidas pelo sistema IH, as melhores estimativas apontam para um número entre 129 e 140 mil desde 2010, envolvendo mais de 500 unidades administrativas locais, 27 estados e o Distrito de Columbia, com destaque para a Califórnia e a Região Metropolitana de Washington DC.

Avaliando a questão crítica de se os programas de IH causam a redução da produção total de habitações e/ou a elevação dos preços dos imóveis, Sturtevant alerta para a baixa confiabilidade das pesquisas que concluíram que sim. Em suas próprias palavras, “as pesquisas mais rigorosas sobre os programas de IH não registraram qualquer impacto sobre a produção habitacional e efeitos apenas modestos, se não irrelevantes, sobre os preços.

A parte mais importante da exposição trata dos fatores que contribuem para o sucesso, ou fracasso, de programas de IH, deduzidos pela autora de sua próprias pesquisas e relatos de outras experiências.
. O primeiro e principal fator é o ímpeto do próprio mercado de incorporações. Programas de IH são estruturalmente dependentes desse mercado, portanto de sua situação local ou conjuntural. Muitas iniciativas locais foram negativamente afetadas pela crise de 2007-8, ao passo que programas aplicados em regiões de forte demanda de mercado, como a RM de Washington DC, têm sido bastante bem sucedidos.
. Programas de IH de aplicação compulsória (83% do total) são em geral mais bem-sucedidos que os de aplicação voluntária, cujo sucesso depende, como se pode imaginar, de incentivos como o aumento da edificabilidade e outros tipos de compensação. Em março de 2016, a Câmara Municipal de Nova York aprovou a conversão de seu programa de IH voluntário em compulsório, “criando o mais ambicioso programa de IH do país”.
. Programas de IH, voluntários ou compulsórios, são mais bem-sucedidos, ou enfrentam menos resistência, quando associados a bônus compensatórios como aumentos da edificabilidade (os preferidos), aceleração de licenças, redução de exigências construtivas (e.g. vagas de estacionamento) e isenção de taxas.
. A previsibilidade do programa de IH, isto é, a clareza e estabilidade de suas regras, são fundamentais para o cálculo de rentabilidade dos empreendimentos, portanto o sucesso do programa.
. Embora à custa do objetivo de integração socioespacial, a flexibilidade no cumprimento da obrigação de IH mediante construção de unidades de em outros terrenos ou recolhimento do valor correspondente a um fundo de habitação pode contribuir significativamente para o sucesso dos programas em face de situações adversas como o alto custo da terra na localidade, a resistência comunitária ao aumento de densidade e a insuficiente capacidade administrativa do governo local.
Sturtevant conclui sua exposição asseverando que programas de IH podem ser componentes eficazes de políticas habitacionais locais em uma conjuntura de escassez de recursos federais para a habitação social. A integração socioespacial das famílias beneficiárias é vista como vantagem comparativa desse tipo de programa em face de alternativas quantitativamente mais relevantes.

Ela resume:
"Em geral, os programas de IH mais eficazes tendem a ser os de caráter compulsório, aplicados a mercados habitacionais dinâmicos e desenhados com regras claras, compensações econômicas adequadas e um leque de alternativas para o cumprimento da obrigação."
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Aos interessados em formar uma visão mais completa do tema, recomendo a leitura do Policy Focus Report (2016) do Lincoln Institute of Land Policy, a cargo de Rick Jacobus, intitulado “Inclusionary Housing: Creating and Maintaining Equitable Communities [3] e da contribuição de Costa, Albuquerque e Rampazio, “Cota de solidariedade: comparando políticas entre cidades norte americanas e São Paulo”, de 2015. [4]
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NOTAS

[1] “Separando fatos e ficção: como construir programas eficazes de inclusão habitacional”.

[2] Sturtevant, Lisa. “Separating Fact from Fiction in Research on Inclusionary Housing Programs”. National Housing Conference maio 2016.
https://www.nhc.org/wp-content/uploads/2017/10/Separating-Fact-from-Fiction-to-Design.pdf

[3] Jacobus, Rick. “Inclusionary Housing: Creating and Maintaining Equitable Communities". Policy Focus Report, Lincoln Institute of Land Policy, Cambridge 2015

https://www.lincolninst.edu/sites/default/files/pubfiles/inclusionary-housing-full_0.pdf

[4] Albuquerque G H B, Pereira da Costa A B P e Rampazio L F.  “Cota de solidariedade: comparando políticas entre cidades Norte Americanas e São Paulo”. PARC v. 6, n. 1, UNICAMP 2015.



2017-06-24


terça-feira, 20 de junho de 2017

A cidade ex novo como núcleo histórico

Expansão urbana de Maringá - PR
1947 (plano original), 1980 e 2014

Fonte: Rubira 2016 [1]
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O estudo das cidades ex novo da época moderna importa menos pela fama que carregam de "cidades planejadas" do que pelo testemunho que nos dão das possibilidades, limites e contradições envolvidas no processo de planejamento urbano.

Uma dessas contradições, de consequências práticas pouco claras mas culturalmente bem estabelecida, diz respeito à natureza singular de seu "núcleo histórico" - abrangendo o “centro” propriamente dito e o perímetro urbano original -, nem sempre devidamente reconhecido, ou valorizado, como tal pelos munícipes e suas instituições.[2]

Em textos não acadêmicos disponíveis na Internet, o termo cidade planejada quase sempre se refere a alguma cidade construída "do zero" - quer sobre um autêntico vazio rural, quer sobre um núcleo rural ou litorâneo pré-existente. Sua marca distintiva é a existência de um traçado.

Na verdade, o "plano" de uma cidade nova pode tanto consistir em pouco mais do que um simples tabuleiro, como no caso de Teresina e Aracaju - disputadas como "mais antiga cidade planejada do Brasil" - como, no outro extremo, em um conjunto urbano totalmente edificado e rigidamente regulado, como no caso de Brasília. O mais das vezes, no entanto, verificam-se situações intermediárias: um trama projetada de vias e praças públicas, acompanhada de um conjunto de regulações básicas relativas ao zoneamento, ocupação do solo e preservação de áreas verdes.

O certo é que, em quase todos os casos, o crescimento da cidade nova transborda o limite originalmente estabelecido e novos ciclos regulatórios e de obras públicas - viárias, principalmente - têm início, para dar conta, dentre outros, do próprio processo de expansão urbana. Não raro, esse transbordamento é concomitante à execução do projeto original, pela via do assentamento não devidamente programado dos trabalhadores envolvidos em sua construção.

É assim que as "cidades planejadas", independentemente de sua posição na escala da modernidade, se convertem, pode-se dizer, em núcleos históricos de suas próprias transfigurações metropolitanas, caracterizados não pela antiguidade dos conjuntos edificados remanescentes - geralmente reciclados, lá onde existem, para uso geral sob a tutela de programas especiais de proteção e conservação - mas pelos atributos técnicos, funcionais e artísticos de componentes ainda plenamente operacionais como o traçado, os parques e áreas verdes, os centros cívico e administrativo etc., mais ou menos bem adaptados aos primeiros ciclos de sua vida útil.  

Estou postulando que o núcleo planejado de uma metrópole fundada no século XX pode ser tão “histórico” e prenhe de significados e tradições quanto qualquer Centro Histórico declarado Patrimônio da Humanidade pelas Nações Unidas! Depende, talvez, do que o observador entende por “história” e do que busca no qualificativo que lhe corresponde.

Em postagens futuras, buscarei examinar sob este prisma os núcleos planejados de quatro importantes cidades novas brasileiras, criadas sob os auspícios do urbanismo moderno em distintas épocas, lugares e circunstâncias: Belo Horizonte (1895), Goiânia (1933), Maringá (1947) e Brasília (1960).

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[1] Rubira, Felipe G, “Análise multitemporal da expansão urbana de Maringá-PR durante o período de 1947 a 2014 envolvendo o Parque Municipal do Cinquentenário e as principais áreas verdes do município”, em Caderno de Geografia (PUC Minas), v.26, n.46, 2016, pp 334-361. http://periodicos.pucminas.br/index.php/geografia/article/view/P.2318-2962.2016v26n46p333/9513

[2] “Hemos visto que los habitantes de La Plata no demostraron reconocer el valor del patrimonio histórico de fines del siglo XIX y se mostraron indiferentes ante los edificios nuevos y prácticos. ¿Por qué esa cultura de demoler el pasado? ¿Por qué no construir nuevos lugares, nuevos sitios preservando e incorporando lo antiguo?” LOSANO G, “La Plata: de la ciudad apreciada a la ciudad ignorada”. Geograficando año 2, no. 2, 2006, p. 201-223
http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/art_revistas/pr.360/pr.360.pdf


2017-06-22


sábado, 10 de junho de 2017

Vem aí o Jardim Cafubá (II)

Deu n’O Globo Rio - Bairros
05-06-2017, por Renan Almeida


Túnel Charitas-Cafubá inaugura neste sábado

Via altera a dinâmica do trânsito entre Região Oceânica e a Zona Sul

A partir de amanhã, a Região Oceânica fica bem mais próxima da Zona Sul com a entrega da obra que por décadas esteve no imaginário dos moradores da cidade. O túnel que liga os bairros de Charitas e Cafubá abre para circulação de veículos às 13h, um ano e dez meses depois da detonação que marcou o início das perfurações. (..) O túnel tem 1.350 metros de extensão e, para percorrê-lo, são necessários cerca de dois minutos, na velocidade máxima permitida de 80km/h (veículos leves) e 60km/h (ônibus e caminhões).
(Continua)



Muito mais do que a do trânsito, como quer O Globo, a inauguração do túnel Charitas-Cafubá altera a dinâmica do mercado imobiliário de Niterói, cumprindo aquele que é, a meu ver, o principal objetivo de sua execução: turbinar a valorização dos bairros da Região Oceânica por meio do acesso rápido ao mercado de trabalho do Centro metropolitano e ao parque de comércio e serviços de Icaraí.

Não é por acaso, creio, que o Executivo municipal, que até hoje não apresentou um plano de integração tarifária do futuro BRT com o serviço hidroviário de Charitas ao alcance do trabalhador comum, tampouco um plano convincente de extensão do sistema de transporte público até o Centro de Niterói, tenha por outro lado construído a toque da caixa as garagens subterrâneas vizinhas à estação de catamarãs. O preço do estacionamento diário, ou mesmo a tarifa do BRT, somado à do Catamarã Charitas só cabe no orçamento dos que exercem funções qualificadas em grandes empresas estatais e privadas do Centro do Rio.

Para o setor imobiliário, que não é mero figurante nesse filme, o componente automobilístico da Transoceânica tem um valor específico que vai muito além do BRT e já produz efeitos muito antes do início de sua operação.

Além de servir aos automobilistas da Região Oceânica que demandam o Centro do Rio pelo serviço de catamarãs, o túnel Charitas-Cafubá, por força de seu traçado e sistema de acesso, tende a revolucionar os preços do solo em todo o entorno da Lagoa de Piratininga, que, pela idade da ocupação, relativo isolamento das praias - a despeito da proximidade física - e urbanização precária, há muito se mostravam declinantes em relação a zonas de crescimento mais recente e dinâmico como Camboinhas e Itaipu. Localidades como Cafubá e Maralegre, principalmente, e a própria Praia de Piratininga passam a estar, até onde o congestionamento de tráfego permitir, a poucos minutos por automóvel do parque de comércio de grife e serviços especializados de Icaraí.

O retorno, ao noticiário, do tema da urbanização e regularização fundiária da orla da Lagoa de Piratininga não é mera coincidência. Resta ver como a pressão gentrificadora afetará as comunidades, informais algumas delas, há muito aí instaladas e pressionará, por outro lado, a legislação urbanística bastante restritiva dos aproveitamentos de terreno, portanto dos lucros imobiliários. O certo é que a valorização ocorrerá.

Ao passo que o BRT é uma incógnita, o túnel rodoviário é sucesso garantido entre os niteroienses motorizados. Niterói é a cidade brasileira de mais elevado rendimento familiar mensal per capita (R$ 2.303,00 IBGE 2010), com uma distribuição sócio-espacial que nada tem de homogênea. A família niteroiense compradora de habitação de mercado tem carro do ano, às vezes dois, e redes familiares distribuídas entre os bairros litorâneos da baía (Ingá, Icaraí, Jardim Icaraí) e oceânicos (Piratininga e Grande Itaipu), todos na Zona Sul. Na Zona Norte, quando muito, resta um avoengo.

Morar num apartamento novo do Jardim Cafubá trabalhando no Centro do Rio, enquanto o(a) parceiro(a) leva e busca as crianças no colégio no Jardim Icaraí e aproveita para consultar o especialista e as butiques da moda da Rua Moreira César, passa a ser uma rotina viável e bastante atraente. Vez por outra, ainda se poderá ir ver a bisa em sua casa no Barreto.

Inversamente, as praias oceânicas, Camboinhas e Piratininga principalmente, estarão muito mais acessíveis aos residentes de Ingá, Icaraí e Jardim Icaraí, bairros muito valorizados de praias lindas, mas com águas para lá de duvidosas.

A reeleição do prefeito, tudo indica, está bem encaminhada.


Contudo, uma pergunta se impõe: se se cogita a complementação do BRT até o Centro da cidade por meio de um VLT - até porque o BRT é um grande consumidor do bem público mais escasso de Niterói, o espaço superficial - por qual razão não é o próprio VLT que se estende até Itaipu? Por que obrigar o cidadão que não puder pagar o Catamarã Charitas a mais uma transferência modal, com seu próprio custo individual de tempo e dinheiro, para chegar à estação das barcas da Praça Araribóia? Segregação social planejada? Vicissitudes do “planejamento por oportunidades”?

De minha parte, pelo menos até o dia em que o sistema BRT-Catamarã Charitas ofereça tarifas populares, ou que o BRT transoceânico se estenda, sabe Deus como, até o Centro da cidade, eu me permitirei considerá-lo uma solução técnica incompleta e de alto risco, destinada antes de tudo a dourar a pílula do gasto com a abertura do túnel.

Considerando tratar-se de uma intervenção de alcance inegavelmente estratégico e que, por força de recente decisão da Câmara de Vereadores, não haverá pedágio, a conta será repartida por todos os munícipes nos termos da estrutura tributária.

Não se ouviu falar de estudos e medidas relativas aos impactos econômicos da intervenção, obviamente negativos para o comércio e os serviços no transcurso das obras e potencialmente muito positivos para a propriedade imobiliária antes, durante e depois delas.

Em especial, não se considerou a adoção de um regime diferenciado de Outorga Onerosa do Direito Construir, tampouco a aplicação da Contribuição de Melhoria, ou Valorização, nas regiões servidas, com vistas à cobertura dos custos do novo sistema e suas ações urbanizadoras. Nessas circunstâncias, toda elevação extraordinária de preços do solo é indicativa de benefícios líquidos da intervenção em favor de proprietários de terrenos e incorporadores imobiliários.

Para estudantes e pesquisadores, o estudo das variações de preços na Região Oceânica em geral e, em especial, o levantamento das transações imobiliárias realizadas nas regiões de Cafubá, Maralagre e Piratininga a partir de 1-2 anos anteriores ao anúncio público da obra poderão apresentar resultados deveras interessantes.

2017-06-10