HURD R M, "Chapter XI - Summary", em Principles of City Land Values. New York: Record and Guide, 1903
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Embora rotineiramente mencionado em textos de economia regional e urbana como um dos precursores dessa ciência no início do século XX, Richard Melancthon Hurd (1865-1941) não pertence à ilustre linhagem de autores dos modelos ditos "de equilíbrio" que constituem o cerne da teoria econômica da localização.
Sua presença na árvore genealógica da economia espacial, em cujo tronco figuram nomes como Ricardo (1817), Von Thunen (1830), Haig (1920), Christaller (1933), Losch (1940), Isard (1956), Wingo (1961) e Alonso (1964), é geralmente associada, quase diria limitada, a uma célebre formulação relativa ao problema crucial do custo da distância, apresentada em seu livro de 1903 intitulado Principles of City Land Values:
Dado que o valor [da terra] depende da renda, a renda da localização, a localização da conveniência e a conveniência da proximidade, podemos eliminar os passos intermediários e dizer que o valor [da terra] depende da proximidade. [1]
É na imediata continuação desse aforismo, contudo, geralmente esquecida pela literatura econômica, que reside a essência do pioneirismo de Hurd no campo dos estudos urbanos:
A pergunta que se segue é, proximidade a que? — o que nos conduz aos requisitos dos diferentes aproveitamentos da terra, sua distribuição na área urbana e a consequente criação e distribuição de valor.[2]
Ao contrário do que sugere o título, Principles of City Land Values é uma obra precursora, se não da economia - creio que também é, sob um aspecto que comentarei adiante -, mas da geografia urbana e, por extensão, de um urbanismo que acolha em seu âmbito o estudo dos processos de estruturação, obsolescência e reestruturação das cidades modernas, aí incluídos os bairros, os parcelamentos, as ruas e as edificações. Para provável surpresa do urbanista contemporâneo, todas essas dimensões do espaço construído têm lugar no estudo de Hurd.
E por um bom motivo. No prefácio da obra, seu autor resume em poucas linhas as circunstâncias peculiares em que o economista e avaliador Richard Hurd se defrontou com o problema dos valores do solo urbano e o modo como se propôs a resolvê-lo:
Ao assumir, em 1895, a direção do Departamento de Hipotecas do U. S. Mortgage & Trust Co., [Hurd] buscou em vão, na Inglaterra e nos EUA, livros sobre a ciência da propriedade imobiliária urbana que o ajudassem no trabalho de avaliação. Tendo encontrado apenas artigos fragmentários e, nos livros de economia, somente breves referências ao solo urbano, decidiu esboçar uma teoria da estrutura das cidades e, com base nela, estabelecer as escalas de preços médios gerados pelos diferentes aproveitamentos da terra. (Itálico meu).[3]
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Se a pretensão de “esboçar uma teoria da estrutura das cidades” parece remeter à tradição dos grandes tratados de meados do século XIX - como é o caso, em nossa disciplina, da Teoria Geral da Urbanização, de Ildefonso Cerdà -, o resultado final da obra, atendendo ao objetivo precípuo de “estabelecer as escalas de preços médios gerados pelos diferentes aproveitamentos da terra”, condiz muito mais com a cultura técnico-científica proveniente do establishment industrial e comercial de sua época, cultura que no âmbito dos estudos urbanos antecedeu, na Inglaterra e Estados Unidos, à consolidação da universidade como usina e agência reguladora da produção do conhecimento na segunda metade do século XX. Ainda em 1925, no clássico The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, uma espécie de programa da vertente sociológica que veio a ser conhecida como Escola de Chicago, Park e Burgess mencionam o papel decisivo das concessionárias de serviços públicos e grandes cadeias varejistas na produção de conhecimentos relacionados à organização espacial urbana:
O recente desenvolvimento de cadeias de varejo tornou a localização um tema de grande interesse para as empresas. O resultado foi o surgimento de uma nova profissão. [ Existe agora uma classe de especialistas cuja única ocupação é descobrir com precisão científica, levando em conta as mudanças esperadas das tendências atuais, os melhores endereços para restaurantes, tabacarias, drogarias e outras unidades varejistas cujo sucesso depende fortemente da localização. [4]
Salvo melhor juízo, Richard Hurd é o fundador da linhagem de “urbanólogos de mercado” a que pertencem dois outros eminentes economistas-avaliadores, o estadunidense Homer Hoyt, criador do modelo de estrutura urbana por setores de círculo, em 1939, e o colombiano Oscar Borrero, especialista contemporâneo em preços imobiliários, recuperação de mais-valias fundiárias e organização espacial urbana na América Latina.
Um notável exemplo da conexão técnico-científica entre Hurd e Borrero é a importância que ambos atribuem ao ciclo de vida do valor imobiliário, conceito fundamental para a compreensão das mudanças na estrutura e composição do espaço urbanizado. Os mesmos processos de valorização e desvalorização das localizações descritos por Hurd e por ele sintetizados, em 1903, com uma analogia caracteristicamente organicistaA vida do valor do solo, seja de uma cidade inteira, de um
setor urbano ou de um simples lote de terreno, guarda uma estreita analogia com
a vida de tudo mais: um pequeno começo, o crescimento e fortalecimento graduais
até o ápice, seguindo-se um declínio mais ou menos prolongado (..) um ciclo de
mudanças que vai da não-existência à extinção, ou renascimento, quando o
processo se repete sobre o mesmo solo. [5]
reaparecem muito mais precisa e detalhadamente explicados por Borrero, um século depois, na linguagem da análise matemática:
Os estudos
citados permitiram concluir que o comportamento da valorização real do solo (em
pesos constantes) de uma área se assemelha a uma curva de Gompertz ou a uma função
logística (..) [6]
No plano estritamente econômico, foi Hurd quem formulou, em 1903, o princípio fundamental da preempção da terra-localização urbana pelo uso - negócio ou residência - que puder fazer por ela a maior oferta de renda.
Em geral, a base da distribuição de todos os usos comerciais
é puramente econômica: a terra é arrematada pela maior oferta e o ofertante aquele
que pode obter dela o maior ganho. Observe-se que quanto melhor a localização
maior a quantidade de usos que ela pode ter e, consequentemente, maior a
quantidade de ofertantes. A base do valor da terra de uso residencial, por sua
vez, é social, não econômica – ainda que também arrematada pela maior oferta: os ricos escolhem as localizações que mais lhes agradam, os de
rendimentos médios procuram estar o mais perto deles que consigam, e assim por
diante na escala de riqueza, ficando os trabalhadores mais pobres nas piores
localizações, como as adjacências de fábricas, ferrovias, docas etc., ou longe
da cidade. [7]
Na terminologia contemporânea de Smolka e Goytia,
A
concorrência entre pretendentes com diferentes funções de oferta de renda
define os padrões de uso do solo, correspondendo o aproveitamento econômico da terra
ao seu maior e melhor uso. Este conceito, baseado na técnica da avaliação
imobiliária, postula simplesmente que a atividade que extraia o maior benefício
de uma dada localização é aquela que provavelmente fará por ela a maior oferta
de renda. (..) Enquanto houver um uso superior competindo pela localização, o proprietário receberá uma oferta maior pelo terreno. Quando cessarem as ofertas, o terreno terá alcancado o seu 'maior e melhor uso'. [8]
É significativo da primazia dos modelos econômicos de localização no moderno estudo da organização espacial urbana o fato de tal princípio só se ter tornado amplamente difundido e aplicado depois de ajustado por William Alonso, em 1964, à teoria econômica do consumidor.
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Principles of Land Values é um livro de 160 páginas, profusamente ilustrado, que em muitos aspectos lembra um manual.
Seu décimo primeiro e último capítulo, que trago ao leitor nesta postagem, é uma síntese dos dez anteriores, dos quais somente a primeira parte do Capítulo I - Princípios Gerais, parte do Capítulo VIII - Tipos de Edificações e a totalidade do Capítulo IX - Aluguéis e Taxas de Capitalização podem ser ditos especializados em teoria da renda da terra urbana e aplicações da ciência da avaliação.
Todos os demais capítulos constituem um estudo pioneiro da localização dos usos econômicos do solo, das mudanças relativas dessas localizações no processo de expansão urbana, da consequente valorização e desvalorização do solo e respectivas edificações e, mais amplamente, dos processos de estruturação e reestruturação espacial urbana. São eles:
Capítulo I - Princípios Gerais (2a. parte), onde Hurd postula o caráter não-aleatório do crescimento urbano como condição sine qua non da avaliação imobiliária e a sujeição da estrutura das cidades a um conjunto de leis, a primeira delas a da expansão em todas as direções a partir do ponto de origem;
Capítulo II - As Forças que Criam as Cidades, de viés sócio-histórico essencialmente funcionalista, talvez por isso mesmo o mais sucinto e insuficiente de toda a obra;
Capítulo III - Localização das Cidades, dedicado às condicionantes fisiográficas, econômicas e políticas do surgimento das cidades - dos EUA principalmente, foco principal do trabalho;
Capítulo IV - O Plano do Chão (título aqui traduzido literalmente com uma expressão cara ao urbanista português Nuno Portas), dedicado ao exame histórico e econômico dos arruamentos e parcelamentos do solo urbano;
Capítulo V - Direções da Expansão, estudo da influência dos corredores de acessibilidade na formação da configuração espacial da cidade; categoria analítica crucial na obra magna de Flávio Villaça “Espaço Intra-Urbano no Brasil” (1998);
Capítulo VI - Distribuição Espacial dos Usos, dedicado ao exame da especialização e diferenciação dos usos, de seus determinantes locacionais e de sua movimentação no espaço conforme o rumo da localização mais valorizada.
Capítulo VII – Feixes de Deslocamento, onde Hurd analisa as localizações dos distintos usos como categorias relacionais derivadas das viagens regulares dos habitantes urbanos e os impactos dessas mesmas correntes de tráfego e seus meios físicos e operacionais sobre o valor das localizações.
Capítulo VIII - Tipos de Edificação (parte), dedicado ao exame da adequação econômica do uso e arquitetura das edificações às localizações, incluindo problemas relativos à verticalização e espaço aéreo;
Capítulo X - Escala de Valores Médios, que traduz em mapas os esforços teóricos e analíticos de Hurd em termos de sua atividade-fim, a avaliação de terrenos, aplicada a um significativo número de cidades estadunidenses de sua época.
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As ilustrações são um capítulo à parte em Principles of City Land Values, não por serem belas e vistosas - muito ao contrário -, mas abundantes e comentadas. Incluem uma série de mapas da evolução de Paris entre os anos 56 a.C. e 1705 (ano de sua publicação) e uma preciosa coleção de imagens históricas de cidades dos Estados Unidos. Um interessante acervo fotográfico ilustra a crítica da arquitetura de grandes edificações centrais herdadas do século XIX por inadequação ao princípio do máximo valor da “frente de rua” ou à própria localização.
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Foi por meio da proficiência técnica, principalmente, mas também do descortino cientificista de Richard Hurd que a grande cidade capitalista começou, em 1903, a tomar ciência de sua constituição espacial e da mecânica - não da natureza social e histórica, aspecto para o qual o economista pragmático e conservador não estava aparelhado - de suas transformações.
De seu objeto Hurd soube, no entanto, extrair e ensinar uma lição básica nada menos que revolucionária: a de que a cidade é uma entidade espacial maleável, cujas localizações são sempre relativas e seus valores uma estrutura em permanente estado de “equilíbrio instável” que arrasta consigo, para bem e para mal, o parque edificado:
Toda redução do custo das edificações, todos os aperfeiçoamentos na construção, todas as invenções tendem a destruir o valor das edificações existentes. Todas a melhorias em transportes, como os bondes, os elevados, o metrô, a bicicleta, o automóvel – e no futuro talvez as máquinas voadoras– tendem a destruir o valor das localizações que dependem dos transportes existentes. [9]
Faz todo o sentido que sua obra seja arrematada com um parágrafo que começa dizendo: “A mudança é a lei da vida”.
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Flavio Villaça (1929-2021) |
Até onde chegam meus conhecimentos atuais, Principles of City Land Values é o estudo pioneiro dessa categoria do espaço geográfico que o recém-falecido Flávio Villaça propôs designar, em discussão a que dedica toda uma seção de sua obra magna, como "intra-urbano" [10].
O título desta postagem é uma homenagem do blog ao notável arquiteto, urbanista, geógrafo, pesquisador e professor.
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HURD 1903 CHAPTER XI - Summary pelo link
https://docs.google.com/document/d/1DpC1cKyp8bHu_MAyegpfnGOYmlcZoYR18urRW1w_BUQ/edit?usp=sharingNOTAS
[1] HURD R M, Principles of City Land Values. New York: Record and Guide, 1903, p. 13: “Since value depends on economic rent, and rent on location, and location on convenience, and convenience on nearness, we may eliminate the intermediate steps and say that value depends on nearness.”
https://archive.org/.../principlesofcity.../page/n4/mode/1up
[2] Id., p.13: “The next question is, nearness to what? – which brings us to the land requirements of different utilities, their distribution over the city's area and the consequent creation and distribution of values.”
[3] Id. Prefácio: “When placed in charge of the Mortgage Department of the U. S. Mortgage & Trust Co. in 1895, the writer searched in vain, both in England and this country, for books on the science of city real estate as an aid in judging values. Finding in economic books merely brief references to city land and elsewhere only fragmentary articles, the plan arose to outline the theory of the structure of cities and to state the
average scales of land values produced by different utilities within them.”[4] BURGESS E W, “The Growth of the City: An Introduction to a Research Project", em BURGESS, E W e PARK R E,
The City: Suggestions for Investigation of Human Behavior in the Urban Environment, The University of Chicago Press, 1984: Chicago e Londres, p.5.
http://shora.tabriz.ir/Uploads/83/cms/user/File/657/E_Book/Urban%20Studies/park%20burgess%20the%20city.pdf
[5] HURD R M, op. cit., p. 18. "The life of
value in land, whether the unit taken is a city, a section of a city, or a single
lot, bears a close analogy to all other life in being normally characterized by
a small beginning, gradual growth and increased strength, up to a point of maximum
power, after the attainment of which comes a longer or shorter decline to a final
disappearance. (..) undergoes a continuous
evolution from a state of non-existence through a cycle of changes to a final
dissolution, or to a new birth, when the process is repeated on the same land.”
[6] BORRERO Oscar, “Formación de los precios del suelo urbano”, Lincoln Institute of Land Policy, Educación a Distancia, 2000, pp.27-28. "Los estudios citados han permitido concluir que el comportamiento de la valorización real de la tierra (en pesos constantes) de un área se asemeja a una curva de Gompertz o a una logística (..) Partiendo de mínimo precio determinado, que puede ser el valor agrícola, al ser incorporada dicha área dentro del perímetro urbano, bien sea espontáneamente o en forma planificada, la tasa de valorización real se acelera inicialmente en los primeros años, debido al proceso de urbanización, hasta llegar a su máximo nivel de crecimiento que coincide con el punto inflexión de la curva, identificado en el gráfico como "B". A partir de entonces, el valor continúa aumentando en términos constantes (por encima de la inflación) aunque su tasa anual de crecimiento o valorización se hace cada vez menor. Al llegar al punto C, los precios del terreno están creciendo paralelamente al ritmo de valorización real es entonces cero. A partir de dicho momento, los precios no compensarían la inflación monetaria, o la pérdida del poder adquisitivo de la moneda y la tasa de valorización real es negativa. Por otra parte, en ciertas zonas centrales (o de aglomeraciones intensiva y consolidada de actividades económicas) que presentan síntomas de deterioro económico y/o físico, su renovación urbana como resultante de inversiones del Estado o de los particulares, puede hacer que en un momento dado la tasa negativa que venían registrando se frene y durante un tiempo se obtengan nuevas tasas positivas de valorización para luego continuar a un ritmo similar a la inflación durante el período que dure el efecto de la renovación. Este efecto de renovación urbana estaría representado en el Gráfico por la línea punteada a partir del punto "R".
https://drive.google.com/file/d/12719bJhO6ztK8uQ2cj6MhJzEwVuiH6Vv/view?usp=sharing[7] HURD R M, op. cit., p.77-8: “In general the basis of the distribution of all business utilities is purely economic, land going to the highest bidder and the highest bidder being the one who can make the land earn the largest amount. We may note that the better the location the more uses to which it can be put, hence the more bidders for it. On the other hand, the basis of residence values is social and not economic—even though the land goes to the highest bidder—the rich selecting the locations which please them, those of moderate means living as near by as possible, and SO on down the scale of wealth, the poorest workmen taking the final leavings, either adjacent to such nuisances as factories, railroads, docks, &c., or far out of the city.”
[8] SMOLKA O e GOYTIA C, “Land Markets”, em The Wiley Blackwell Encyclopedia of Urban and Regional Studies 15-04-2019, Wiley Online Library: "Competition among users with different bid-rent functions thus defines urban land-use patterns, with land developed at its “highest and best use.” This concept, widely relied upon for real estate assessments, simply states that the activity drawing the most benefit from a certain location is likely to be in a position to offer the highest bid for that location. (..) As long as there is a superior use competing for a location, the landowner receives a higher bid for the parcel. When the bidding stops, the parcel is said to be at its highest and best use.
[9] HURD R M, op. cit, p. 159: “All cheapening of the cost of buildings, all improvements in construction, all inventions, tend constantly to destroy the value of existing buildings. All improvements in transportation, such as the trolley, the elevated, the underground, the bicycle, the automobile - and in future possibly the flying machine - tend to destroy the value of these locations which depend on existing transportation.”
[10] VILLAÇA F (1998),
Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: FAPESP 2001
2021-05-10