Dentre todas as capitais brasileiras (fora Brasília) e municípios com mais de 500 mil habitantes, Niterói, ex-capital e próxima da lista em população, era até 2010 a segunda em domicílios com rendimento familiar acima de 5SM, a primeira em IDH e a primeira em… receita de IPTU por habitante!
Sim, leitores, como vocês poderão constatar nos gráficos anexos a essa postagem, Niterói recolheu R$371,46 per capita em IPTU no ano de 2010, valor de que somente São Paulo se aproxima e que é maior do que o praticado nas cidades do sul do país.
Dadas, porém, as as altas taxas de imóveis informais entre as camadas de menor rendimento, em geral não sujeitos à cobrança de IPTU, o gráfico abaixo é uma representação mais fidedigna da realidade. Nela, Niterói ainda ocupa um mais do que surpreendente segundo lugar.
Não tenho a menor dúvida de que o IPTU de Niterói é muito mal aplicado. No meu bairro há uma “subsede” do serviço de limpeza urbana e garis que parecem exclusivos de cada rua, a quem regularmente me ocorre perguntar: “No bairro onde você mora também tem alguém varrendo e limpando o tempo todo? Alguma equipe permanente saneando, pavimentando, iluminando e arborizando? Tem escola pública e posto de saúde?”
E nem precisamos ir tão longe. Basta um passeio à Zona Norte da cidade, ao tradicional bairro do Barreto, na divisa com S. Gonçalo, ou mesmo no Cubango, aqui pertinho de casa, para perceber o sentido expressão inglesa “the wrong side of the tracks”.
Antes que nos esqueçamos, quero lembrar que a compra do Cinema Icaraí por 17,5 milhões de reais (segundo O Fluminense), outra aplicação para lá de duvidosa do nosso IPTU (e do nosso Imposto de Renda, também, porque o MEC foi sócio da operação), até agora não foi esclarecida. A fachada do cinema segue cercada por um tapume de alumínio e o relatório de avaliação oculto atrás de uma cortina de silêncio. Na época, anunciou-se que o Ministério Público pensava em intervir. Na imprensa e no facebook foi dito, por gente mais bem informada do que eu, que a Caixa avaliara o imóvel em R$ 6,5 milhões. Na postagem “17 milhões por um cinema tombado? II” (ver e acessar na coluna da esquerda), o leitor encontrará uma sugestão minha de qual teria sido o princípio avaliatório (inaplicável ao caso, por se tratar de um bem tombado) usado para se chegar aos 17,5 milhões - jubilosamente recebidos, decerto, pelo proprietário do imóvel.
Pois bem. Ainda que mal aplicado, o IPTU de Niterói não deve, a meu juízo, ser reduzido. Não quero dizer, bem entendido, que não deva ser marcado sob pressão e rigorosamente criticado pelos niteroienses. Mesmo não sendo especialista em gestão de IPTU, tenho razoável noção das dificuldades de se construir um sistema eficaz do ponto de vista administrativo e, sobretudo, consistente do ponto de vista fiscal – vale dizer, que facilite o acesso à terra para todas as camadas sociais, a começar pelas de menor rendimento. Mas sei que é possível - com qualificação profissional, um correto entendimento do seu papel na determinação do preço da terra e - não há que duvidar - muita persistência, debate público e disposição de enfrentar os beneficiários das rendas fundiárias.
Meus estudos de política de solo me ensinaram que o IPTU é um imposto diferente dos demais – porque a terra em geral, e o solo urbano em particular, é uma mercadoria de tipo muito particular. (Recomendo a leitura de meus artigos “A braços com as peculiaridades da mercadoria terra urbanas” e “O mercado imobiliário e a formação dos preços do solo”, que se podem encontrar e acessar na coluna da esquerda deste blog.)
A escassez constitutiva da mercadoria solo urbano implica que seu uso é cedido, sob aluguel ou venda, sempre pela maior oferta de renda disponível no mercado, geralmente o limite da capacidade de pagamento-endividamento dos candidatos a ocupantes. A “maior oferta de renda” por uma localização ubana – que vem de braço dado com o valor da benfeitoria nela ancorada – é o somatório dos valores que se têm de pagar pelo direito de ocupar o solo (físico ou fração ideal) embutidos na entrada, nas parcelas intermediárias, no imposto de transmissão, no financiamento imobiliário e… no IPTU!
A conclusão é: o acesso ao solo urbano absorve, regra geral, a totalidade da renda ofertável, qualquer que seja a sua repartição em preço pago ao proprietário e impostos sobre a propriedade. Por isso, tudo o que a coletividade (município, governo federal) deixa de cobrar à renda da terra na forma de impostos (Transmissão, IPTU) vai parar no bolso do proprietário como valor do aluguel ou preço de venda!
E isso não é “teoria” – é bastante perceptível, até no plano pessoal. Eu penso só ter podido comprar o apartamento onde moro desde 2009, numa área razoavelmente valorizada de Santa Rosa, Niterói (m2 privativo em novos lançamentos por R$5.500,o0), porque o elevado IPTU da cidade colocou o preço do imóvel ao meu alcance.
Explico-me: se o IPTU fosse mais barato, digamos, a metade, o teto de financiamento para todos os demandantes daquele produto-localização seria elevado - e com ele o preço do imóvel - em montante equivalente à capitalização a longo prazo de seu componente “solo” (por oposição a "benfeitoria"). Isso excluiria a mim e a todos os que, devido à idade, só alcançassem financiamento a 25 anos ou prazo menor. Se o imóvel custasse 20-25 mil reais a mais, acrescido do aumento proporcional do ITBI, eu não poderia comprá-lo com a soma de minha poupança e minha capacidade de endividamento no mercado bancário. Vale dizer, o IPTU elevado colocou-me na disputa, onde pude exercer a vantagem de que dispunha: liquidez a curtíssimo prazo.
É isso mesmo, leitor: em se tratando de solo (que nas grandes cidades pode ser a parte do leão do valor de um bem imobiliário), maior IPTU significa, inapelavelmente, menor preço! A renda total paga será a mesma, mas o IPTU financia uma parte dela a longo prazo – e o que é mais importante – recolhida aos cofres públicos. Quanto maior for a parte da renda da terra cobrada pela coletividade via IPTU, menor será a parte embolsada pelo proprietário via preço (ou aluguel) do imóvel.
Dou outro interessante exemplo, tirado também de uma experiência familiar recente. Imagine o leitor que, num conjunto habitacional localizado perto do litoral, dois apartamentos idênticos em dois blocos contíguos são colocados à venda depois de avaliados, ambos, por R$400.000.
Verificando-se a papelada, descobre-se que um deles, que chamaremos “B”, o mais próximo ao litoral, está em área de marinha e sujeito, portanto, ao pagamento, ao Tesouro da União, de 5% do valor da transação a título de laudêmio. A pergunta é: quais os preços de transação prováveis desses dois apartamentos?
A julgar pela recorrente choradeira dos incorporadores a propósito da Outorga Onerosa do Direito de Construir (“Nããoo, a Outorga Onerosa encarece o produto imobiliário!”), deveríamos concluir que o laudêmio “encareceu” o imóvel B em R$20.000.00. Mas depois de muito tentar, o proprietário do imóvel B é obrigado a admitir que o avaliador estava certo: a máxima oferta do mercado pelo imóvel é R$400.000,00. Ele será obrigado, portanto, a arcar com o laudêmio, apurando na venda os restantes R$380.000,00.
Se, por fortuna, o proprietário de B conseguisse vendê-lo por R$420.000,00, isto apenas significaria que o avaliador estava errado em ambos os casos. O proprietário de A deveria, nesse caso, pedir de volta o dinheiro pago ao avaliador e recolocar seu imóvel no mercado pelos R$420.000 ofertados a proprietário de B.
Neste exemplo, o laudêmio de R$20.000 funciona como um IPTU federal capitalizado a valor presente! O laudêmio não “encarece” o imóvel: ele apenas destina ao Tesouro da União uma parte da maior oferta de renda disponível no mercado por um dado produto-localização – no caso, um apartamento de 2 quartos em área de marinha do bairro “x”. E por não ser financiável, ele implica necessariamente uma redução de igual valor no máximo preço que o vendedor poderá conseguir pelo imóvel no mercado.
E os pobres? – há de perguntar, muito apropriadamente, o leitor. Os pobres podem pagar IPTU?
Eu respondo – prometendo voltar ao assunto com mais vagar - com outra pergunta: será exato dizer que os pobres “economizam” em IPTU por não serem cobrados pela prefeitura? As pesquisas de valores imobiliários nas favelas costumam mostrar que, quanto menor o rendimento e maior a informalidade, maior a proporção do rendimento familiar absorvido pela moradia. Por quê?
Porque o efeito da escassez constitutiva da mercadoria solo urbano nas favelas é não apenas da mesma natureza que na cidade formal como muito mais constrangedor e inapelável por serem menores os rendimentos e, portanto, a margem de manobra orçamentária das famílias. A dura realidade do mercado imobiliário nas comunidades informais é que tudo o que o morador informal poupa em IPTU (e em “gatos” de água e energia) tende a ser capturado pelo locador informal de moradias e pequenos negócios. Em resumo: o que o pobre informal não paga de IPTU gasta em aluguel. E, ainda por cima, fica sem serviços e marginalizado dos direitos cidadãos.
Voltaremos oportunamente a este assunto falando de como esse efeito se manifesta no mercado informal de lotes periféricos.
Por isso, leitor, eu insisto. Por pior que possa ser a sua administração e utilização, o IPTU de Niterói é um sinal de civilidade tanto quanto o nosso IDH, o nosso índice de Gini e a nossa média de renda domiciliar - independentemente de como e porque isto tenha acontecido.
Não ousaria dizer que o baixo valor do IPTU está na raiz dos níveis mais altos de pobreza existentes nas capitais do Norte-Nordeste brasileiro, mas não tenho a menor dúvida de afirmar que ele é parte importante de uma cultura parasitária que tem como seu mais precioso princípio o sagrado direito do proprietário da terra à totalidade da renda que ela possa gerar.
Qualquer similaridade entre a importância relativa do IPTU e o nível geral de riqueza observáveis à escala do mundo e internamente aos países não é mera coincidência. Em qualquer lugar do planeta, a taxação substancial da renda da terra urbana é - ou foi, em outras épocas, lugares e circunstâncias - uma pré-condição da distribuição sustentável da riqueza.
2012-04-19