terça-feira, 10 de julho de 2012

O Preço de um CEPAC – Roteiro para uma novela com prólogo e três capítulos


Uma amiga arquiteta, suave até onde me compete saber, perguntou-me há alguns dias se eu sei como se calcula o preço dos CEPACs - Certificados de Potencial Construtivo Adicional.

Considerando a distância em que me encontro das operações em curso ou já realizadas no país, minha resposta honesta só poderia ser: não! Porém, ai de mim, pessoas mais qualificadas e bem-informadas do que eu a quem andei fazendo essa mesma pergunta tampouco souberam, ou puderam, me dizer. 

Incomodado com esse autêntico buraco negro que perturba, com sua força gravitacional, o problema da concessão onerosa de potencial construtivo em nosso país, senti-me tentado a vestir, uma vez mais, a carapuça de Nero Wolfe das Operações Urbanas.

Oque aqui ofereço ao leitor – nessa forma tosca que o escassíssimo tempo de que disponho atualmente me permite – é o resultado de minhas ruminações sobre o tema. Espero que ele esteja, senão à altura, pelo menos à cintura do rotundo detetive e sirva para ao menos açular a curiosidade e o pensamento crítico do meu minúsculo círculo de não-seguidores. Prometo mais à frente enriquecê-lo com contribuições, críticas próprias e de terceiros - sem prejuízo dos segundos - e, é claro, grafismos esclarecedores. (E, quem sabe um dia, com alguma pesquisa de campo.)


Recomendo ao leitor, pra melhor entendimento, a leitura paralela da postagem “Duas ou três coisas que sei dela (A Outorga Onerosa do Direito de Construir): a natureza residual do valor da terra" (http://abeiradourbanismo.blogspot.com.br/2011/11/duas-ou-tres-coisas-que-sei-dela.html)


Capítulo 1: Premissas

1 A finalidade do CEPAC é gerar receita pública exclusivamente destinada ao financiamento de obras em um dado perímetro urbano.

2 Os CEPACs representam o direito privado de se construírem, no perímetro e no prazo de vigência de uma Operação Urbana consorciada - OUC, m2 excedentes ao Coeficiente Básico de aproveitamento dos terrenos. 

3 O preço de 1 CEPAC equivale a uma fração do lucro que ele é capaz de gerar no momento de sua utilização, a maior parte do qual atende pelo nome de renda da terra. Aí reside o interesse que possam ter os incorporadores na sua aquisição. 

4 O preço do CEPAC não corresponde ao rateio do custo das obras da Operação Urbana, como é o caso da Contribuição de Melhoria (rateio entre os proprietários de imóveis beneficiados pela valorização). O CEPAC é recuperação antecipada, pelo poder público, de parte da renda da terra a ser gerada em NOVOS EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS no perímetro da Operação. 

5 O Ajuste entre o custo total das obras e a receita da venda de CEPACs pode ser feito, pela municipalidade, de 4 maneiras, TODAS SUJEITAS À "SANÇÃO DO MERCADO": (1) aumento do perímetro da Operação Urbana - mais área a ser edificada resulta em maior quantidade de CEPACs; (2) aumento dos Coeficientes de Aproveitamento de Terreno no perímetro da Operação - edifícios maiores resultam em maior quantidade de CEPACs; (3) redução do custo das obras sem redução da valorização imobiliária esperada ; (4) aumento do preço do CEPAC, vale dizer, mudança no “rateio” da renda excedente dos empreendimentos imobiliários entre a prefeitura e os incorporadores. 

6 Embora a recuperação pública da renda da terra possa teoricamente variar, como explica o prof. Carlos Morales, entre 0% e 100%, é certo que, numa economia pouco regulada, um incorporador não compraria voluntariamente à municipalidade um CEPAC que lhe custasse 100% da renda por ele acrescida. Está, pois, convencionado (em São Paulo como em Bogotá), que a recuperação pública da renda da terra derivada de potencial construtivo excedente equivale a 50% da renda acrescida. É como se o governo repartisse 50-50 com o incorporador a renda excedente, da mesma forma como, nas avaliações, o incorporador reparte 50-50 com o proprietário da terra o retorno bruto do empreendimento.

7 Na construção em altura, a renda da terra é diretamente proporcional ao coeficiente de aproveitamento - DESDE QUE CONSIDERADO EM TERMOS DE M2 LÍQUIDOS, ou privativos, unidade de produto imobiliário cujo somatório equivale à totalidade da receita e que contém, em frações iguais, a totalidade dos custos. Se com CA=1 a renda gerada pela terra é, digamos, R$300.000, com CA=4 a renda da terra será R$1.200.000,00. 

8 Considerando a típica operação paulistana em que o Coeficiente Básico é 1 e o Coeficiente Máximo é 4, temos que a metade da renda acrescida é igual à 1/2 de 3/4 da renda total, ou seja 37,5%. Numa Operação Urbana em que Cb=1 e C=5, teríamos que metade da diferença seria igual 1/2 de 4/5, portanto 40% da renda total, e assim por diante. 

9 Os avaliadores ensinam que o empreendimento imobiliário RESIDENCIAL em altura, DE LUCRATIVIDADE MÍNIMA, tem uma estrutura tal que o Custo Total do Empreendimento soma cerca de 70% do VGV (Valor Geral de Vendas) e, por conseguinte, o Retorno Bruto (Margem Operacional, em espanhol latinoamericano) 30% do VGV, repartido, regra geral, 50-50 em retorno (custo) de capital e renda da terra (15% [ou mais] para o incorporador e [até] 15% para o proprietário do terreno). Essa mesma proporção está contida, por conseguinte, em cada m2 privativo vendido. 

Capítulo 2: Desenvolvimento  

10 Sabendo que a típica OUC paulistana tem Cb=1 e C=4 e supondo, para começar, que ela fosse homogeneamente composta de empreendimentos residenciais de lucratividade mínima, então a contrapartida por m2 privativo necessária para recuperar-se 37,5% do valor residual (renda total) seria equivalente a 37,5% de 15%, vale dizer, 5,625%, do seu preço de venda médio. Para obtermos a contrapartida por m2 excedente outorgado, vale dizer, o preço de 1 CEPAC, basta distribuir esta proporção da renda pela proporção de m2 privativos excedentes sobre o total. Um CEPAC custaria, pois, 4/3 de 5,625%, isto é, 7,50% do preço de venda do m2 privativo. 

11 Considerando, porém, que os empreendimentos da OUC típica NÃO SÃO DE LUCRATIVIDADE MÍNIMA, mas destinados a populações de renda média, média alta e alta, e que o preço de venda do m2 privativo varia muito mais que proporcionalmente ao custo total do m2 de construção, podendo, até, MAIS QUE DOBRAR a cota de terreno por m2 privativo vendido (de 15% para 30%, por exemplo), eu estimo que o preço de 1 CEPAC na operação Água Espraiada (Cb=1 e C=4), é da ordem de 4/3 de 37,5% de 30%, vale dizer, 15% do preço de venda estimado do m2 privativo médio no momento do seu lançamento em leilão[1]. Isto quer dizer que, se o preço de venda médio estimado do m2 for R$7.500,00, então 1 CEPAC (representando 1m2 PRIVATIVO excedente) custará R$ 1.125,00.[2] Essa proporção poderá variar segundo o fator estimado para o custo total de construção (construção+administração+comercialização) do empreendimento padrão no perímetro da OUC. Quanto maior o preço de venda do m2 privativo, menor o fator de custo total de construção e maior a parte da renda da terra no preço de venda do m2 privativo. Grosso modo, CUSTO TOTAL + RENDA DA TERRA = 85% DO VGV.  (Retorno, ou custo, de capital = 15% do VGV). 

12 Um conhecido avaliador estimou, em 2005, a “cota de terreno” média no preço do m2 privativo de um imóvel novo do Leblon, Rio de Janeiro, em 60%, que é o que "sobra" (resíduo) depois de descontadas as cotas do retorno de capital (Taxa Mínima de Atratividade) [15%] e do custo total do empreendimento [25%!]. Em uma OUC de Cb=1 e C=4 num lugar urbano de preços tão elevados, 1 CEPAC valeria, pois, 4/3 de 37,5% de 60%, ou seja, 30% do preço de venda do m2 privativo (digamos, R$ 5.400,00 para um preço de venda de R$ 18.000,00). 

13 De tudo isso se pode, facilmente, deduzir uma formuleta, e até uma tabelinha, que nada mais são do que aplicações do método residual dedutivo de avaliação do preço de um terreno. Só é preciso estar a par dos fatores de custo total (construção+administração+comercialização) relativos a cada faixa de preço de venda do m2 privativo, ou seja, relativos a cada localização da cidade. Deixo isso para depois.

Capítulo 3: Conclusão 

14 Este raciocínio pode ser igualmente aplicado ao preço da Outorga Onerosa do Direito de Construir, desde que a consideremos como preço do m2 PRIVATIVO excedente. Para fazê-lo pelo m2 BRUTO de construção, teremos de aplicar ao preço um fator M2 BRUTO/ M2PRIVATIVO. Eu penso que isto seria uma tolice, porque o que o incorporador vende é o M2 PRIVATIVO, que contém em frações iguais todos os custos e ao qual ele remeterá, em qualquer caso, o cálculo de custos de m2 excedentes adquiridos por OODC. Ao incorporador interessa saber, no fim das contas, quanto a OODC (ou o CEPAC) “comerá” do seu lucro extraordinário (renda da terra) por m2 PRIVATIVO vendido. A OODC calculada pela metragem bruta construída só faz complicar o cálculo de quanto ela efetivamente vale como proporção da renda da terra. 

15 A vantagem que a metodologia aqui esboçada pode ter, sobre as fórmulas atualmente em uso no Brasil para o cálculo do preço da OODC, é prescindir de um crônico fator de turbulência técnica, para não dizer de autêntica inconsistência teórica, que atende pelo nome de “valor venal” e está sempre a exigir "coeficientes de planejamento e de ajuste" dos valores obtidos.
Para mais detalhes sobre o que me parece ser a "inconsistência teórica" de nossas fórmulas de OODC, peço aos leitores a paciência de ler o artigo “Contribución al estudio de la "Outorga Onerosa do Direito de Construir" (Brasil): contenido económico y fórmulas de cálculo (maio 2007)”, neste mesmo blog (http://abeiradourbanismo.blogspot.com.br/2007/05/contribucion-al-estudio-de-la-outorga.html), ou aguardar até que eu possa produzir uma explicação simplificada. Para resumir, adianto que essas fórmulas mandam calcular y = (f) x quando a teoria e a prática do valor residual da terra nos ensinam que, neste caso, x = (f) t, ..., y! Em linguagem comum: as fórmulas nos mandam calcular o preço da OODC em função do preço do terreno quando, na verdade, o preço do terreno é função, dentre outras coisas, da própria OODC. No Excel, isto se chama "referência circular".
16 As vantagens de se usar a proporção do preço de venda médio do m2 privativo como preço da OODC são várias: a primeira e mais sonante é que tal método se deduz diretamente do caráter residual do valor da terra. Duas outras são: (1) a de que o preço de venda do m2 privativo é um dado público, acima de qualquer dúvida e, por definição, rigorosamente atualizado, cuja operacionalização só exigiria retardar a cobrança da OODC até o momento do lançamento imobiliário; (2) a de que qualquer pesquisador teria como comparar o valor real do m2 privativo excedente cobrado a título de OODC em todas as cidades do país - tornando transparente o verdadeiro alcance da OODC, em extensão e profundidade.
Posfácio
A bem da verdade, caro leitor, sempre que visto a carapuça de Nero Wolfe das Operações Urbanas o meu alter ego faz má-criação, esperneia e berra, furioso: “Quero ser Carlos Morales!” E eu respondo: "Pero ¿por qué no te callas? Enxerga-te, imbecil!" 
Devo admitir, no entanto, que a reivindicação do insolente avatar não é totalmente destituída de sentido: pois quem surgiria na vinheta deste artigo se, ao personagem que ali escruta, lupa em punho, tirássemos o bigodinho e puséssemos um par de lentes esverdeadas e um cabeleira mais rarefeita e alourada? Ele, o autêntico Sherlock Holmes da renda da terra urbana, de quem nunca hei de esquecer a frase lapidar: "Pero si el promotor puede obtener por el inmueble un valor aún más alto, por que razón ya no lo vendía a ese precio?"
Ele talvez concordasse comigo ao menos numa coisa: poucos epítetos se ajustam tão bem à renda da terra urbana quanto "la femme piège". E é por isso que eu sempre digo ao rabugento avatar:
- Prefiro continuar brincando de Nero Wolfe. 

Posfácio 2 (09-07-2015) 
1) 1 CEPAC representa, do ponto de vista econômico, 1*n m2 de produto imobiliário excedente ao Coeficiente Básico de aproveitamento do terreno (corrigida a distorção causada pelo seu cômputo urbanístico em m2 brutos construídos, que não têm valor nem preço de mercado). O preço de 1 CEPAC, consequentemente, é o preço que a municipalidade cobra pela fração ideal de terreno necessária para “ancorar" esse 1*n m2 de produto imobiliário excedenteComo proprietário monopolista de todas as frações excedentes, a municipalidade pode cobrar por cada uma, em teoria, qualquer porcentagem da renda por ela gerada, vale dizer, do preço pelo qual ela é vendida pelo incorporador ao adquirente do produto final. 
2) Como se trata, para a municipalidade, de atrair sócios privados para o seu empreendimento de renovação urbana, é razoável supor que os CEPACs sejam oferecidos em leilão ao preço mínimo equivalente a 50% da renda do solo (valor residual) que ele deverá gerar, uma base rotineiramente usada nas negociações entre incorporadores e proprietários de terreno quando não há escassez demais nem de menos de terrenos incorporáveis na região. (Ver nota [2], abaixo).
3) O Coeficiente Básico, nesse caso, determina a proporção (Cb/C) dos m2 úteis totais produzidos pela qual a municipalidade nada cobrará. 


[1] A valorização da terra esperada entre o momento da compra do CEPAC e o momento da sua utilização resulta em ganho líquido do proprietário do CEPAC. Dentre outras razões, é para recuperar parte do valor gerado nessa defasagem temporal que as OUCs paulistanas vendem CEPACs por “lotes” a cada etapa da operação, vale dizer, do desenvolvimento das obras de melhorias urbanas.

[2] No 2o leilão da 5a distribuição de CEPACs da Operação Urbana Consorciada Água Espraiada, em 14 de junho de 2012, o CEPAC foi oferecido e vendido pelo preço mínimo de R$ 1.282,00,* um valor muito próximo do aqui sugerido. Admitindo-se o preço de venda médio de R$ 7.500,00 por m2 privativo residencial como uma estimativa razoável, o preço do CEPAC efetivamente cobrado pela prefeitura de São Paulo corresponde a uma "cota de terreno" não de 30%, mas de exatos 34,2% - uma proporção próxima do provável nessa faixa de preço! (*Fonte: "Operação Urbana Consorciada Água Espraiada: Posição em 21/05/2014", São Paulo Urbanismo)




2012-07-10