Por Isabela Bacellar Brandão Guimarães (Dissertação de
Mestrado em Arquitetura e Urbanismo)
À
beira do urbanismo traz aos leitores o trabalho desenvolvido pela arquiteta e
urbanista Isabela Guimarães - sob orientação da Prof. Vera Rezende e co-orientação da Prof. Fernanda Furtado - como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense - Niterói, 2007.
O
tema da Transferência do Direito de
Construir, que à primeira vista parece simples, desdobra-se em uma
complexidade que o atinge em suas diversas facetas, seja no campo regulatório,
de aplicação, de gestão e de controle do instrumento, bem como nas bases
conceituais do instrumento. O principal propósito do presente trabalho é
verificar quais as implicações das diversas formas de aplicação, de gestão e de
regulamentação da Transferência do
Direito de Construir nas práticas de algumas administrações municipais
brasileiras – Porto Alegre, Curitiba, Goiânia e Salvador. Busca-se analisar os
conflitos provenientes da interação e da regulamentação não coordenada da TDC
com outros instrumentos urbanísticos, em especial a Outorga Onerosa do Direito de Construir e a relação entre os fins
instituídos para a Transferência do Direito de Construir no Estatuto da Cidade
e institutos jurídicos relacionados ao planejamento urbano, como o Tombamento, a Desapropriação e a Usucapião.
Isabela Bacellar Brandão Guimarães, setembro de 2014.
Transferência do Direito de Construir: Questões e conflitos na aplicação do instrumento do Estatuto da Cidade
Introdução
Não se pode negar que o crescimento dos centros urbanos tem se dado de forma desordenada. O poder público, através do planejamento urbano, busca enfrentar os atuais problemas urbanos dos municípios brasileiros, como o crescente processo de favelização, o agravamento da questão ambiental, a violência urbana, o tráfego caótico de veículos, a enorme distância entre as classes sociais, o saneamento urbano insuficiente, dentre inúmeros outros problemas.
Como resolver, então, a ‘crise urbana’ das cidades brasileiras? A solução não é simples e não se resume a uma só resposta. Ademais, não consiste em atos isolados, mas em processos contínuos que exigem a colaboração de todos os atores envolvidos – poder público, sociedade, empresários, entidades de classe, organizações não-governamentais, etc. Nesse cenário, o poder público atua como o coordenador das ações dos demais atores e dos interesses coletivos e individuais.
A atuação da administração municipal concretiza-se em procedimentos de planejamento urbano, composto por fases de elaboração, regulamentação, aplicação do plano, gerenciamento e fiscalização. As decisões quanto a esses procedimentos traduzem-se pelo conjunto da regulamentação urbanística municipal – Leis Orgânicas, Planos Diretores, Leis de Uso e Ocupação do Solo, Códigos de Edificação, demais leis e decretos municipais.
No nível nacional, o Estatuto da Cidade – Lei Federal nº 10257, de 10 de julho de 2001 - vem disciplinar as propostas de reforma urbana no país, prenunciadas pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao regulamentar os artigos 182 e 183, que tratam da política urbana nacional.
A aplicabilidade local de determinados instrumentos de regulamentação urbana previstos no novo estatuto consolidou a importância do Poder Público Municipal conferida pela Constituição Federal, concretizando o dever de aplicação local das regras de direito
urbanístico através de seus Planos Diretores, os quais devem atender às Diretrizes Gerais contidas no Estatuto da Cidade.
Regulamentados pelo Estatuto da Cidade em linhas gerais, os instrumentos de política urbana devem ser desenvolvidos e regulamentados mais especificamente pelas administrações municipais de forma a adequá-los às suas realidades locais, dentro dos limites estabelecidos em lei. Esses instrumentos são os meios para a operacionalização da política urbana municipal.
Os instrumentos urbanísticos presentes no Estatuto da Cidade, dentre eles a Transferência do Direito de Construir (TDC), objeto do presente trabalho, carecem de contornos mais nítidos para que sua utilização atinja, eficazmente, aos propósitos urbanísticos, sociais e ambientais.
A TDC é prevista para o objetivo de viabilizar a preservação de imóveis ou áreas de importante valor histórico, cultural, arqueológico e ambiental, além da hipótese de transferência para casos de regularização fundiária, programas de habitação de interesse social e implantação de infra-estrutura urbana e equipamentos comunitários. É instrumento de regulação pública do exercício do direito de construir, que pode ser utilizado pelo Poder Público municipal para condicionar o uso e edificação de um imóvel urbano às necessidades sociais e ambientais da cidade.
A previsão do instrumento no Estatuto da Cidade está contemplada no art. 35, a seguir:
Art. 35. Lei municipal, baseada no plano diretor, poderá autorizar o proprietário de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for considerado necessário para fins de: I – implantação de equipamentos urbanos e comunitários; II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural; III – servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse social. § 1o. A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que doar ao Poder Público seu imóvel, ou parte dele, para os fins previstos nos incisos I a III do caput. § 2o A lei municipal referida no caput estabelecerá as condições relativas à aplicação da transferência do direito de construir.
A deliberação lei federal que confere ao Poder Municipal o estabelecimento das condições relativas à aplicação da TDC possibilita a existência de ampla diversidade de aplicação, de gestão e de regulamentação do instrumento pelos municípios. Esta multiplicidade de formatos pode ocasionar dificuldades de adequação do instrumento, como tem sido verificado por pesquisas no campo urbanístico.
Aplicado isoladamente, o instrumento em análise apresenta lacunas na regulamentação e problemas na sua aplicabilidade, bem como nos mecanismos de gestão e de controle. Ressalta-se a problemática da utilização simultânea e não coordenada da TDC e de outros instrumentos urbanísticos, em especial a Outorga Onerosa do Direito de Construir, além de pontos críticos na sua interação com outros institutos jurídicos relacionados com as questões urbanas e sobretudo com os fins estabelecidos para a TDC, tais como o Tombamento, a Desapropriação e a Usucapião Urbana.
Pode-se considerar, como hipótese, que as dificuldades de conceituação e de regulamentação do instrumento acabam por colaborar para conseqüências indesejáveis em sua operacionalização (aplicabilidade e gestão).
Em razão dessas dificuldades, o formato do instrumento, em seus diversos aspectos, ainda não pode ser considerado plenamente consolidado pelas práticas das administrações municipais brasileiras.
Observando-se a evolução que a TDC adquiriu na experiência de alguns Municípios, o que se percebe, de fato, é a necessidade de uma maior reflexão teórica em busca da otimização desse mecanismo, em busca de uma melhor vertente de sua regulamentação e conseqüente aplicação.
Verifica-se, portanto, a necessidade de se elucidar algumas questões fundamentais a respeito do tema, para o aprimoramento das formas de gestão da terra. O primeiro passo para isso seria então a identificação e sistematização dos principais problemas a serem enfrentados, tarefa à qual se dedica este trabalho. A correção de problemas de aplicabilidade e gestão representa uma das prioridades das administrações locais, que buscam, com a revisão de seus Planos Diretores para a adequação ao Estatuto da Cidade, superar estas dificuldades.
No caso da TDC, é notável uma relativa escassez de estudos aprofundados acerca da sua aplicação por municípios brasileiros, principalmente quando comparada ao instrumento Solo Criado/Outorga Onerosa do Direito de Construir, discutido no Brasil há mais de trinta anos. Em geral, encontram-se trabalhos que tratam o tema da TDC em linhas gerais e relatos pontuais de algumas experiências municipais, não havendo pesquisas sistematizadas voltadas às experiências municipais quanto aos aspectos mais críticos da aplicabilidade do instrumento.
O tema, que à primeira vista parece simples, desdobra-se em uma complexidade que o atinge em suas diversas facetas, seja no campo regulatório, de aplicação, de gestão e de controle do instrumento. As discussões de fundo sobre a TDC baseiam-se na argüição da titularidade do direito de construir, traduzida no direito aos índices construtivos concedidos pelo poder público aos proprietários de terrenos urbanos.
Percebe-se que as várias questões relacionadas com a TDC ainda permanecem sem consenso, o que acaba por contribuir para a maior complexidade e dificuldade da aplicação do instrumento. Considera-se esta pesquisa um primeiro passo para a construção de um melhor entendimento sobre o tema.
As experiências municipais constituem a base para atingir os objetivos desta pesquisa, cujo enfoque principal é dado às dificuldades encontradas pelas administrações públicas quanto à aplicação, à gestão e à regulamentação da TDC.
Busca-se, nesse sentido, sistematizar e analisar algumas questões fundamentais para uma melhor elaboração e/ou adaptação da regulamentação do instrumento, uma vez que se têm verificado diversos problemas quanto à operacionalização da TDC como instrumento de planejamento urbano.
Este trabalho tem o propósito de contribuir para a realização de melhores práticas de planejamento urbano e para a consolidação do formato de aplicação e gestão da TDC, através da investigação de experiências municipais e do aprofundamento da algumas questões críticas fundamentais, que poderiam indicar alguns caminhos para a utilização do instrumento pelas municipalidades.
De forma mais específica, busca-se discutir a relação entre as finalidades da TDC definidas pelo Estatuto da Cidade, da maneira como vem sendo utilizado pelas municipalidades brasileiras, e sua interação com outros institutos jurídicos ligados às questões urbanas, já mencionados.
(Continua)
Acesse a íntegra da dissertação pelo link
2014-09-19