O edifício Spinelli, no coração de Nova Friburgo - RJ, não me parece uma
das criações mais felizes da arquitetura decô brasileira. Sem falar que nunca o
vi por dentro e que desconheço os aspectos técnicos de sua construção.
Comparando as fotografias, de 1958 (segundo uma fonte da Internet) e 2015, seu acabamento externo parece tão insípido hoje quanto teria sido na época da inauguração, em 1942, efeito agravado pela presença, ao fundo, da enorme empena cega do edifício que ganhou como vizinho. Consta que é tombado desde 1972, como parte do conjunto arquitetônico e paisagístico da Praça Getúlio Vargas.
Comparando as fotografias, de 1958 (segundo uma fonte da Internet) e 2015, seu acabamento externo parece tão insípido hoje quanto teria sido na época da inauguração, em 1942, efeito agravado pela presença, ao fundo, da enorme empena cega do edifício que ganhou como vizinho. Consta que é tombado desde 1972, como parte do conjunto arquitetônico e paisagístico da Praça Getúlio Vargas.
É evidente, no
entanto, que não se trata de uma construção qualquer – à parte o fato de ser o
primeiro “edifício” construído na cidade, congênere friburguense do festejado colosso carioca A Noite, na Praça Mauá.
Abstraída a hiperbólica “ponte de comando” escalonada - característica da arquitetura decô de inspiração naval - que dá corpo ao
seu eixo vertical de simetria e suscita o sentimento de "singularidade à primeira vista", resta um bem proporcionado edifício de
volumetria horizontal, com frente para a esquina em generoso chanfro dignificado
por arestas de duplos pilares embutidos que se erguem, desde os pequenos balcões
do segundo pavimento, acima da platibanda da cobertura. Tudo arrematado pelo par
de ameias que suportam o letreiro da companhia proprietária - aí não por
acaso, como se verá.
A arquitetura comercial do pavimento térreo nada tem a ver com o que
entendemos hoje como lojas de “frente de rua”, contemplando o que parece ser
uma “galeria” na fachada lateral que dá para a Rua 7 de Setembro - hoje
incorporada ao interior das lojas, alinhando-as com suas vizinhas. Na fachada
principal, o foco é um par de bombas de gasolina abrigadas sob uma saliente marquise
semicircular, tendo ao fundo a loja principal sob o sóbrio letreiro onde se lê “Agência
Ford”.
Tudo, ao que parece, em estrutura de concreto.
Do ponto de vista da arquitetura urbana, o partido do edifício propõe uma inversão pouco feliz: os elementos cilíndricos justapostos ao chanfro isolado e profundo, com as bombas de gasolina a 45 graus, ao invés de marcarem a esquina a fazem desaparecer no vazio, levando consigo a continuidade da mais importante calçada comercial da cidade - de hoje e, presumivelmente, de então.
Inverte-se, assim, a bem-sucedida tradição decô, solidamente associada aos primórdios do desenho industrial, de utilizar os elementos construtivos circulares como “dobradiças” de articulação dos planos de fachada correspondentes às ruas que se cruzam. A valorização compositiva da esquina edificada está no DNA da arquitetura decô, nascida da, e para, a sociedade urbana de consumo.
Tudo, ao que parece, em estrutura de concreto.
Do ponto de vista da arquitetura urbana, o partido do edifício propõe uma inversão pouco feliz: os elementos cilíndricos justapostos ao chanfro isolado e profundo, com as bombas de gasolina a 45 graus, ao invés de marcarem a esquina a fazem desaparecer no vazio, levando consigo a continuidade da mais importante calçada comercial da cidade - de hoje e, presumivelmente, de então.
Inverte-se, assim, a bem-sucedida tradição decô, solidamente associada aos primórdios do desenho industrial, de utilizar os elementos construtivos circulares como “dobradiças” de articulação dos planos de fachada correspondentes às ruas que se cruzam. A valorização compositiva da esquina edificada está no DNA da arquitetura decô, nascida da, e para, a sociedade urbana de consumo.
Um pouco de pesquisa nos revela que o projeto do edifício foi encomendado
pela família Spinelli, por volta de 1939, ao italiano Ricardo Buffa, autor, segundo
os guias de arquitetura do Rio de Janeiro produzidos na década de 1990 pela Secretaria
Municipal de Urbanismo, de uma significativa coleção de trabalhos de
arquitetura que transitam entre os estilos eclético e decô: edifícios Lage (Rua
do Russell 300, Glória, 1924) (1) e Guahy (Rua Ronald de Carvalho 181,
Copacabana, 1932) (2), casa Buffa (Rua Hermenegildo de Barros 108-110, Santa
Teresa, 1938) (3), reforma da fachada da Igreja dos Capuchinhos (Rua Haddock
Lobo 226, Tijuca, 1941) (4).
Do Lage ao Guahy ao Buffa ao Spinelli, a trajetória de Buffa é um
eloquente testemunho da substituição progressiva da profusão decorativa do
estilo eclético pela sobriedade compositiva do decô, um dos aspectos, acredito,
que levaram o grupo de arquitetos e pesquisadores cariocas reunidos ao redor de
L. P. Conde a rebatizá-lo “protomodernista”.
A contratação de Buffa para o desenvolvimento deste projeto possivelmente reúne, num só movimento, as vantagens do mérito com as da conterraneidade. E a arquitetura por ele produzida, que deixa, hoje, no
observador interessado como no frequentador rotineiro do comércio
local, a incômoda sensação de “objeto fora do lugar”, só pode, eu creio, ser
compreendida no contexto da encomenda.
A placa com o nome atual da rua secundária, à esquerda, qualifica Luiz
Spinelli como “italiano, comerciante do ramo de panificação (padaria Spinelli),
construção civil e automóveis”. Alguns relatos aqui compilados sugerem, no entanto, que foi muito mais: a Spinelli S.A. incluía a Transportadora Spinelli Ltda.,
a Auto Viação Friburguense, a Companhia Construtora Nova Friburgo, a
representação de gigantes como Ford, Philco e Ultragaz e negócios menores no
setor de carpintaria, marcenaria etc.
O Spinelli foi erguido para ser o carro-chefe, no sentido simbólico
senão no econômico, do pequeno império comercial e industrial da família, “uma
grande holding de Nova Friburgo”, nas palavras de um comentarista atual, tida como motor de seu desenvolvimento econômico e pioneira de sua modernidade urbana.
O primeiro “edifício” da cidade abrigou a sua primeira “loja de departamentos” e
o seu primeiro “posto de gasolina” – todos entre aspas porque, no melhor dos
casos, esses termos apenas começavam a ganhar o significado que lhes atribuímos
hoje.
Da loja, diz um comentarista:
“Vendiam na loja
automóveis, material de construção, eletrodomésticos e tudo que a modernidade
oferecia à época, como os primeiros aparelhos de rádio, geladeira e televisão.
Dizia-se à época que se alguém fosse casar-se, os Spinelli forneciam tudo.
Construíam a casa, faziam os móveis, vendiam os eletrodomésticos, enfim,
forneciam tudo.”
Do posto, acrescenta outro:
“(..) na parte térrea,
foi instalado o posto de gasolina “Caçulinha”, que deveria chamar-se
“Primogênito”, por ser o primeiro da cidade. Até então, [só] existiam bombas
manuais espalhadas no centro (..)
A foto da construção original – que uma fonte diz ser de 1958, mas que me
parece bastante anterior - com o vistoso carro importado, típico da década
de 1940, ao centro e os presumíveis proprietários do edifício - ou do negócio,
ou de ambos - em pé, a uma respeitosa distância do veículo, completa o quadro
com a glória mais conspícua do pioneirismo familiar: reza a lenda que os Spinelli
foram os proprietários do primeiro automóvel a circular por Nova Friburgo.
Não resta dúvida: o posto de gasolina está ali para dar status à construção, seus proprietários, usuários e clientes!
Em meio a tanto pioneirismo, chama a atenção um traço em especial, não tanto arquitetônico quanto comportamental, que parece conectar o Spinelli a uma antiga tradição brasileira amplamente
refletida na arquitetura urbana, essencialmente eclética, de meados do século
XIX: a residência da família no sobrado da própria loja.
“Havia, nos vários
andares, salas para escritórios da empresa e consultórios médicos e dentários
para alugar. Os apartamentos residenciais foram destinados aos membros da
família Spinelli.”
É desses apartamentos que trata o artigo publicado no
jornal Voz da Serra em novembro de
2012, saudando, em favor dos moradores do edifício, a maioria idosos, a mais do
que tardia instalação dos elevadores do Spinelli, previstos no
projeto original de Ricardo Buffa, mas pendentes, há muito, de recursos e adaptações indispensáveis.
“Os 15
apartamentos do Edifício Spinelli, de dois, três e até quatro quartos, com duas
salas, são maravilhosos. Amplos, sólidos e, apesar de tão antigos, sem uma
rachadura sequer. Alguns têm até 120 metros quadrados, o que, hoje em dia, pode
ser considerado um luxo e tanto. Detalhe: como fazia muito frio na época, os
apartamentos contam até com lareira. Além disso, todos os cômodos são voltados
para o sol.”
Tudo o que foi dito talvez explique o mistério de um edifício de
esquina que não tem esquina, com fachada à moda de um navio, volumetria, pavimento térreo e penacho dignos de uma Mesbla serrana e andares ocupados por apartamentos de 120 metros quadrados que se
acessam por dentro de um posto de gasolina.
***
À guisa de conclusão: a preservação de bens do patrimônio arquitetônico
é um tema espinhoso – em se tratando de propriedade privada ainda mais - pelo
qual não pretendo me aventurar.
Mas como friburguense por opção e observador da cidade, gostaria de ver
o Spinelli em melhor forma do que se encontra atualmente.
Deixando de lado o problema crônico da fiação aérea, bem como as óbvias urgências da pintura da fachada e da recuperação das esquadrias, a providência mais imediata seria a repaginação dos letreiros comerciais para liberação das marquises, em especial a que protege as bombas de gasolina, com a recuperação da pintura original de seus pilares.
Mas, cá entre nós, acho que “A Noite da Serra” merecia mais, quem sabe até uma reforma de fachada baseada num conceito de preservação mais flexível. Que tal um concurso de ideias para a sua revalorização arquitetônica - com um mostrador permanente, na calçada, dando a pista e o crédito de sua gênese ilustre?
Imagem: Google map |
Deixando de lado o problema crônico da fiação aérea, bem como as óbvias urgências da pintura da fachada e da recuperação das esquadrias, a providência mais imediata seria a repaginação dos letreiros comerciais para liberação das marquises, em especial a que protege as bombas de gasolina, com a recuperação da pintura original de seus pilares.
Mas, cá entre nós, acho que “A Noite da Serra” merecia mais, quem sabe até uma reforma de fachada baseada num conceito de preservação mais flexível. Que tal um concurso de ideias para a sua revalorização arquitetônica - com um mostrador permanente, na calçada, dando a pista e o crédito de sua gênese ilustre?
2015-11-24
REFERÊNCIAS
“Nova Friburgo: Um Estudo Sobre Identidade Urbanística”, Fernanda
Regina P. Duarte, Dissertação De Mestrado FAU-UNB 2009
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/4128/1/2009_FernandaReginaPereiraDuarte_ate_capitulo_2.pdf
“Art déco e indústria – Brasil, décadas de 1930 e 1940”
Por Telma de Barros Correia,
An. mus. paul. vol.16 no.2 São
Paulo July/Dec. 2008
Guia da arquitetura eclética no Rio de Janeiro
Guia da arquitetura art déco
no Rio de Janeiro
IPHAN /Nova Friburgo
IPHAN / Patrimônio Material RJ
Projeto Nova Friburgo Cultural / Bens tombados de Nova Friburgo
Prefeitura Municipal De Nova Friburgo / Inventário Dos Bens Culturais
Rio Art Déco – Fotografias de Lena Trindade
Hólos Consultores Associados, 2010
“Edifício Spinelli, o mais antigo da cidade, ganha elevador”
Por Dalva Ventura, Jornal A Voz
da Serra, segunda-feira, 12 de novembro de 2012
“Famíla Spinelli”,
Por Janaína Botelho, História e
Memória (blog)
“Spinelli S/A – O orgulho friburguense - Um retorno aos anos 40 (parte
VII)”,
Por Leyla Lopes Melo, Nova Friburgo
em Foco (blog)
“Colonização Italiana trouxe pioneirismo e muita dinâmica para o
progresso de Nova Friburgo”
Por Francisco Rohen, http://www.forumseculo21.com.br/paginas/0415_sec_21_%28pag.12%29.pdf
Lei finalmente protege cerca de 250 imóveis antigos remanescentes em
Nova Friburgo