sexta-feira, 11 de agosto de 2017

As sete vidas da cidade-jardim II

Ebenezer Howard, reformador social 
autodidata, escreveu uma única obra,
publicada em 1898 sob o título
To-morrow: a Peaceful Path to Real Reform
e republicada em 1902 como 

Garden Cities of To-morrow
O artigo anterior desta série foi aberto com a proposição do professor Renato Leão Rego[1][2] de que o modelo de “cidade autônoma de gestão comunitária” postulado por Ebenezer Howard em 1898-1902 sob o nome cidade-jardim não influenciou, ao contrário da ideia amplamente difundida, o desenho urbano de Maringá, cidade nova projetada em 1943 pelo engenheiro Jorge de Macedo Vieira para a Companhia de Terras Norte do Paraná. 

O plano urbano de Vieira teria sido influenciado, sim, pelos princípios e critérios projetuais desenvolvidos por Raymond Unwin e Barry Parker - projetistas de Letchworth, a primeira (de duas) cidades-jardim howardianas - ao longo de suas trajetórias profissionais, no caso de Unwin por via de sua obra de 1909 intitulada Town planning in practice: an introduction of the art of designing cities and suburbs e, no de Parker, pela prática exercida no Brasil entre 1917 e 1919, em projetos de loteamentos para a City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company, mais conhecida como “Companhia City”, onde Macedo Vieira, formado engenheiro pela Politécnica em 1917, estagiou e trabalhou até 1920.

Termina o artigo contrastando o método e as conclusões de Rego com a proposição de Peter Hall, apresentada em sua obra magna Cidades do Amanhã, de que Ebenezer Howard foi o founding father de uma vasta linhagem de planos urbanos inspirados, “para bem e para mal”, em sua cidade-jardim.
Boa parte, senão a maior parte do que aconteceu - para bem e para mal - com as cidades do mundo nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial remonta, podemos dizer, às ideias de uns poucos visionários que viveram e escreveram há muito tempo, quase ignorados e até mesmo rejeitados por seus contemporâneos. [Peter Hall, Cidades do Amanhã. Capítulo 1, "Cidades da Imaginação]
Ebenezer Howard é o mais importante personagem individual dessa história. [Peter Hall, Cidades do Amanhã. Capítulo 4, “A Cidade no Jardim”] [3]
A convocação de Hall a este debate não é fortuita. No artigo precedente eu me disse convencido não apenas da justeza das conclusões de Rego a respeito da linhagem do plano urbano de Maringá, mas também da “grande relevância historiográfica de sua pesquisa”. Por que? Porque sua pesquisa aponta para o problema, por ele mesmo insinuado, mas deixado em aberto nas preliminares de sua exposição, do motivo pelo qual “muita gente se refere a Maringá como uma cidade-jardim ou, quando menos, como uma cidade relacionada a este tipo urbano”. [4] 

Minha hipótese é que o postulado de Hall acima citado habita o cerne de uma interpretação arbitrária e explicitamente idealista, gobalmente difundida e largamente aceita a despeito de seu nítido viés norte-atlântico, do desenvolvimento histórico do urbanismo, do planejamento espacial e, no limite, das próprias cidades. Apoiada, no início do século passado, na autoridade de advogados ilustres como Clarence Stein, Frederick Osborn, Henry Wright, Lewis Mumford e Patrick Abercrombie, e reforçada nos anos 1960 por teóricos e críticos do calibre de Jane Jacobs e Françoise Choay, essa vertente interpretativa, que inclui adeptos fervorosos e adversários figadais, tende a atribuir ao construto de Howard, mais que a suas realizações práticas, Letchworth e Welwyn, uma influência que - salvo, talvez, dentro da própria Grã-Bretanha - ele provavelmente não tem.

Diagrama howardiano da rede de
cidades-jardim autofinanciadas,

dita Social City, destinada a
ocupar 
progressivamente o campo
britânico como alternativa à migração
em massa de camponeses para as
grandes cidades. Peter Hall observa,
em "Cidades do Amanhã", que a
omissão deste diagrama
na segunda edição de To-morrow:
A Peaceful Path for Real Reform
,
estorvou a compreensão de que a Social
City, não a cidade-jardim individual,
é o cerne da contribuição howardiana
ao planejamento urbano moderno.
Cabe especular se tal omissão, 

combinada à significativa mudança do
título do livro para a edição de 1902,
não fazem parte de um processo
 de adaptação do modelo original
às necessidades de sua promoção, 

execução e comercialização a cargo da 
First Garden City Ltd., criada em 1903.
Que o leitor não me interprete mal: como terei, a seu momento, ocasião de demonstrar, eu admiro a Garden City howardiana como admiro a Ciudad Lineal de Arturo Soria y Mata como admiro a Cité Industrielle de Tony Garnier como admiro a Ville Radieuse de Le Corbusier como admiro a Broadacre City de Frank Lloyd Wright. Não por igual, é certo. Tenho minhas predileções, em nenhum caso, porém, como ideia portadora de valores universais ou de respostas transcendentais para os conflitos e aleijões da cidade moderna. Embora caiba, por certo, a discussão da maior ou menor influência de tal ou qual dentre esses "modelos" sobre o modo de ser e se reproduzir das cidades, minha opinião é que a literatura dedicada às generalizações e teorias urbanísticas tem uma notável propensão a exagerá-la. 

Para entendermos a interpretação de Hall, nem tanto sobre o papel histórico dos “visionários” em geral, mas de Ebenezer Howard em particular, precisamos em primeiro lugar saber a que ele se refere com a proposição “o que aconteceu com as cidades do mundo nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial”. É puxando retroativamente o fio da meada desse “acontecido com as cidades do mundo” - supondo que sejam, realmente, do mundo - e esboçando a composição desse “acontecido” na química de sua construção, governança e feedback intelectual - crises e conflitos; necessidades e oportunidades; investimento privado e público; avanços científicos e tecnológicos; iniciativas, projetos e planos urbanos; desenvolvimentos técnicos, teorias e especulações urbanísticas -, que se pode, creio, estabelecer não apenas a dívida real dessas cidades para com a cidade-jardim howardiana, mas também as fontes disso que, a mim, mais parece um pacote hipotecário inflacionado por um derrame de juros compostos. 

Um desafio fascinante, a que pretendo me dedicar - no ritmo requerido por uma investigação à beira do urbanismo - no transcurso dessa série. Cogito, na próxima postagem, oferecer ao leitor uma pequena compilação de elementos factuais que nos propiciem uma aproximação à cidade em que Ebenezer Howard concebeu a sua obra singular. 


___
[1] Professor titular do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá - UEM.

[2] Leão Rego, Renato, “O desenho urbano de Maringá e a idéia de cidade-jardim". Acta Scientiarum- UEM v. 23, Outubro de 2001.

[3] Tradução livre de Hall, Peter. Cities of Tomorrow [1988], edição atualizada Blackwell, Londres, 1996. 

[4] Leão Rego, Renato, id.



2017-08-11