Última edição em 30-07-2023
The Economist 20-12-2022
https://www.economist.com/interactive/christmas-specials/2022/12/20/the-decline-of-the-city-grid |
Montagem: Abeiradourbanismo Clique na imagem para ampliar |
Esse artigo, como tantos outros dedicados ao tema fascinante da urbanização em grade ortogonal, também chamada malha hipodâmica, discute o seu objeto como se as estruturas espaciais urbanas fossem meras opções projetuais: “no último século a quadrícula saiu de moda”.
Um loteador poderá optar, de acordo com a preferência e o poder de compra de seus clientes, entre diversos tipos de traçado. Mas as circunstâncias que geraram o grid de Chicago nada têm a ver com critérios projetuais de urbanismo, preferências do consumidor ou modismos, embora o confirmem como o sistema mais simples e rentável de parcelamento e comercialização do solo: para financiar o Estado recém-criado, a Lei de Terras estadunidense de 1785 (Land Ordinance) dividiu os territórios do Oeste, ainda nem bem conquistados e essencialmente desconhecidos, em townships de 6x6 milhas, subdivididas em 36 sections parceláveis e renegociáveis de 1x1 milha, de modo a facilitar a venda de propriedades agrícolas a colonos nacionais e estrangeiros. Com referência ao uso urbano, que veio a se tornar um maná especulativo, diz a Britânnica de 1963: “Sua vantagem particular era que uma nova cidade podia ser planejada nos escritórios das imobiliárias do Leste e as terras vendidas sem que nem comprador nem vendedor tivessem nunca visto o lugar". [1]
Apesar de generalizado nos Estados Unidos desde o início do século XIX, o uso da malha urbana ortogonal pela indústria da urbanização tem raízes mais antigas e menos plebeias. Em seu clássico La Ciudad en la Historia, Mumford observa que |
Stuttgart 1794,
Edimburgo 1773, Berlim 1789 Clique para ampliar |
El único hecho que lo hace [este tipo de trazado urbano] más notorio en los Estados Unidos que en el Viejo Mundo es la ausencia, excepto en zonas como las de los establecimientos iniciales de Boston y Nueva York, de tipos anteriores de planificación urbana. A partir del siglo XVII, las extensiones de ciudades occidentales, tanto en Stuttgart y Berlín como en Londres y Edimburgo, se hicieron del mismo modo, excepto donde antiguos cursos de agua, caminos o límites de campos habían establecido líneas que no era fácil anular. (..) Estos planos servían únicamente para una rápida división de la tierra, una rápida conversión de solares en lotes y una rápida venta. La carencia misma de adaptaciones más específicas al paisaje o a las necesidades humanas solo aumentaba, por su misma imprecisión e indeterminación, su utilidad general para el mercado. [1a]
O que, por outro lado, não se pode deixar de observar, e que os textos sobre a grade ortogonal em geral desconsideram, é o fato de que a "economia da ocupação do solo", tão bem descrita pelo articulista, que fez da grade ortogonal o traçado padrão da moderna urbanização de mercado, é obrigada por essa mesma urbanização de mercado a coexistir com estruturas de acessibilidade urbana de tipo radial-concêntrico derivadas da “economia da localização” - como representada, por exemplo, no modelo geral da distribuição dos usos do solo na metrópole contemporânea, sintetizado por William Alonso na década de 1960. [1b]
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Imagem: Àbeiradourbanismo |
Essa relação nem sempre amigável entre as estruturas espaciais da apropriação/ocupação do solo para fins urbanos - que remontam aos primórdios das cidades e variam significativamente conforme a época e o lugar - e da moderna acessibilidade urbana - que são essencialmente as mesmas em todo o planeta - constitui a meu juízo um aspecto capital e inescapável do urbanismo de nosso tempo. Em artigo recente, escrevi: “(..) As forças que regem a organização sócio-espacial das metrópoles modernas não se subordinam, apenas se adaptam na medida da necessidade, aos traçados pré-existentes. A "economia da localização" se sobrepõe mais ou menos despoticamente à "economia da ocupação" segundo regras que lhe são próprias. As leis da organização sócio-espacial urbana são as mesmas, e seus efeitos análogos, na cidade radiocêntrica de Porto Alegre e nos vastos reticulados de Barcelona e Chicago. (..)” [2]
Corrijo-me, agora: as leis da “economia da localização urbana” são as mesmas em todas as cidades modernas, vale dizer construídas pela economia de mercado, mas os efeitos de sua coexistência com as regras da "economia da ocupação do solo” variam - segundo a resistência que esta última lhes ofereça. Em 1903, Hurd postulou tal relação nos seguintes termos: as cidades crescem em todas as direções a partir do ponto de origem salvo quando obstaculizadas pela topografia ou pela estrutura da propriedade fundiária pré-existente. [3] Na década de 1920, Burgess reafirmou o postulado acrescentando, como fatores de resistência, eventuais elementos construídos (ferrovias, aquedutos) e, muito importante, as próprias comunidades previamente assentadas no território. [4] Falta acrescentar um aspecto capital: os planos reguladores.
Se defrontadas por um rígido plano regulador de urbanismo, como em Brasília, as leis da economia da localização impor-se-ão à metrópole em expansão como coroa exterior de cidades satélites.
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Brasília - Plano Piloto e cidades satélites Montagem: Àbeiradourbanismo |
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Montagem: Àbeiradourbanismo |
Em face de uma grade parcelária pré-estabelecida, como no caso de Chicago, o arruamento e o reparcelamento do solo para fins urbanos acompanharão a grade e a preferência locacional dos usos residenciais recairá, como observou Burgess num texto de 1929,[5] sobre as principais artérias ortogonais de acesso ao centro de negócios, com a desvalorização relativa dos lotes urbanos situados nas direções diagonais. Por esse exato motivo, observou Burgess no mesmo texto, as manchas urbanas de cidades de planície do Meio-Oeste dos EUA tenderam a se expandir em forma de cruz de malta. Nos dois casos citados, Ft. Worth e Columbus, o próprio grid parece ter sido ajustado para deixar aos obstáculos geográficos as direções diagonais.
Esse efeito é particularmente nítido na
expansão das cidades argentinas nascidas do processo de colonização agrícola do
Pampa Bonaerense na segunda metade do século XIX, como Chivilcoy, situada a
160km de Buenos Aires. Como mostra o mapa de Qualidade da Vida Urbana de DICROCE
et al, [5a] Chivilcoy, com cerca de 56 mil habitantes em 2010, se expande ao longo
das ortogonais principais de acesso ao Centro muito mais rapidamente do que nas
direções diagonais, inclusive no que tange às quadras de maior qualidade de urbanização, consequentemente de maior rendimento familiar. A expansão da urbanização de melhor qualidade ao norte deriva, |
Acréscimos e montagem: Àbeiradourbanismo |
provavelmente, da proximidade da Estação Rodoviária, que desde 1975 dá acesso à capital em substituição à Estação Ferroviária Norte. Para as camadas empobrecidas, a acessibilidade ao centro urbano proporcionada pelos prolongamentos das ortogonais principais aparece aqui como determinante absoluto, a despeito da maior distância. A concentração de quadras de urbanização precária a sudeste, por sua vez, estaria relacionada à presença da Estação Ferroviária Sul, que serve a um ramal destinado ao transporte de cargas. Na ilustração acima, construída sobre o
mapa original de DICROCE et al, são perceptíveis dois aspectos da expansão tendencialmente radio-concêntrica da cidade contemporânea: (1) a distribuição decrescente dos padrões de urbanização e rendimento familiar por coroas circulares e gradientes de preços da
terra resultantes; (2) a formação de um “cone de altos rendimentos” [5b] para além do núcleo fundacional na direção norte. A singularidade que distingue Chivilcoy das cidades de crescimento "orgânico" é a ocupação da totalidade (180 graus) do núcleo fundacional pelas famílias de mais altos rendimentos, produto da enorme diferença histórica de padrão de urbanização relativamente ao seu entorno.
Na Barcelona de Cerdà, a comunicação direta e projetualmente privilegiada da cidade medieval-renascentista com a Vila de Gràcia determinou tanto |
Montagem: àbeiradourbanismo |
a formação do corredor principal de acesso ao novo centro de negócios (Plaça de Catalunya / Portal de l'Àngel) quanto a preferência da localização residencial: o Passeig de Gràcia e a Rambla de Catalunya eram os endereços das mais importantes residências burguesas da primeira metade do século 20. Décadas mais tarde, a cidade radial-concêntrica se manifestaria em sua plenitude, como em todas as demais metrópoles, na configuração de seu sistema de Metrô.
Tal como as redes ferroviária e metroviária, o sistema rodoviário principal da grande metrópole também tende a apresentar a disposição radial-concêntrica determinada pelo princípio geral da menor distância, ou, mais exatamente, da maior acessibilidade das localizações residenciais ao centro urbano principal - superposto, por meio de obras públicas de
grande envergadura, ao arruamento legado pelos ciclos de parcelamento e ocupação privada do solo que o precederam. [6]
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Na ausência de ocupação prévia, de obstáculos
físicos naturais e construídos, de grandes propriedades e de institutos reguladores,
a urbanização de mercado imporá o princípio |
Porto Alegre 1928 - linhas de bonde |
geral dos gradientes de
custo-distância na forma “pura” da expansão radial-concêntrica – caso clássico
da Porto Alegre de inícios do século XX. Abrindo-se em leque para ocupar toda a
“coroa de 180 graus de terra firme disponível para a
expansão urbana” [6a], a capital pós-colonial formou uma rede
orgânica de vias radio-circunferenciais que ensejou a criação, no terceiro quarto do século
XX, tanto de seu sistema de vias perimetrais quanto da região de planejamento batizada
“cidade radiocêntrica”.
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Um caso singular de adaptação da estrutura radial-concêntrica às redes urbanas herdadas do passado é o centro comercial e de negócios. Devido às vantagens econômicas da aglomeração, os negócios tendem a se beneficiar da ocupação dos arruamentos pré- ou proto-modernos, mais ou menos irregulares, mas altamente concentrados. Nas palavras de Hurd:
"Há quem pense que quanto mais larga mais valorizada é a rua, devido à maior capacidade de tráfego. Mas em uma rua comercial, a largura é praticamente irrelevante (..). A pouca largura facilita o intercâmbio entre os dois lados, o que é de alguma forma vantajoso para os negócios quando não implica em limitação à altura dos edifícios". [7]
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Boston 1814 (esq, acima), Boston CBD 1896 (esq abaixo) e Devonshire St atual (dir)
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Essa propriedade dos arruamentos
herdados do passado pré- ou proto-capitalista das metrópoles contemporâneas suscita uma interessante questão: serão os traçados regulares das cidades ex novo, com amplas avenidas centrais, ruas largas e baixa densidade construída um fator historicamente inibitivo do desenvolvimento de suas aglomerações comerciais e, por extensão,
da própria economia urbana?
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Cruzamento da Av Soárez com Alvear, centro comercial de Chivilcoy, Argentina Imagem Google 07-2023 |
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Fonte: Hurd 1903 |
De um modo geral, a configuração espacial da metrópole contemporânea pode ser descrita como uma malha radial-concêntrica irregular e desigual “preenchida” por uma colcha de retalhos de parcelamentos reticulados de distintos tamanhos e padrões projetuais, tendo ao centro, ou em área contígua ao centro de negócios, remanescentes das cidades pré- e proto-capitalistas.
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Retornando ao artigo, a ideia de que “o grid está em declínio” me parece uma dedução meramente circunstancial relacionada, se tanto, às práticas correntes da indústria estadunidense dos loteamentos suburbanos - que orientam a parte final do texto. Relativamente a qualquer outro país, o grid não pode estar em declínio nos EUA: ele é o marco regulador, indelével e indestrutível até onde alcança a perspectiva histórica, de seu singular processo de urbanização, simbolizado nas icônicas imagens de aglomerados de arranha-céus em meio a vastos reticulados urbanos de baixíssima densidade.
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Ft. Worth, Texas, década de 1950 |
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NOTAS
[1] Britannica 1963 V 5 p 816, “City Planning”
[1b] ABRAMO P (2001)
Mercado e Ordem Urbana: do caos à teoria da localização residencial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2001, pp. 65-87
[5] BURGESS E W, "Urban Areas", em SMITH e WHITE, Chicago, An Experiment in Social Sciences Research, Chicago: University of Chicago Press 1929, pp 113-138
[5a] DICROCE L et al 2008, “Implementación de un Modelo de Calidad de Vida Urbana (MCVU). Caso de estudio: Chivilcoy”. IDEHAB, Universidad Nacional de La Plata.
http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/94194