segunda-feira, 27 de maio de 2013

Habitação social no país dos sem-crédito

soluções diversas para um problema complexo
por Antônio Augusto Veríssimo, arquiteto e urbanista


O texto a seguir, de autoria do arquiteto Antônio Augusto Veríssimo, analisa os pressupostos utilizados pelo arquiteto Sérgio Magalhães para a produção de artigo, recentemente publicado em O Globo, com críticas ao programa governamental Minha Casa Minha Vida. Para elaborar esta análise, o autor se apoia nos conceitos da economia urbana sobre a formação do preço do solo, na trajetória recente das políticas habitacionais no continente latino-americano e em distintas experiências internacionais de combate ao déficit habitacional.

O artigo do arquiteto Sérgio Magalhães publicado em O Globo pode ser acessado pelo link
http://oglobo.globo.com/opiniao/minha-casa-no-pais-do-carro-zero-8223777



O Arquiteto Sérgio Magalhães publicou, no Jornal O Globo em 27/04/2013, artigo em que questiona a capacidade do Programa Minha Casa Minha Vida de dar respostas adequadas ao tema da habitação popular no Brasil. Ao modelo adotado pelo Governo Federal, contrapõe a proposta de implantação de um amplo programa de crédito à demanda que dê total liberdade de escolha às famílias, liberando-as do dirigismo e da tutela estatal. Para exemplificar o que considera um paradoxo, citou a facilidade com que se consegue hoje crédito farto e barato para a aquisição de um carro zero de livre escolha do consumidor. O artigo nos leva a acreditar que a simples disponibilidade de crédito para habitação daria conta de suprir a demanda que hoje busca na autoconstrução em favelas e loteamentos irregulares a solução para sua habitação.

O autor parece não levar em conta questões fundamentais para este tipo de análise: em primeiro lugar, as famílias que buscam resolver seu acesso a uma unidade habitacional em assentamentos irregulares não pertencem à mesma classe social dos demandantes por carro zero. Em segundo, o processo de produção da “mercadoria” habitação se dá em condições muito distintas do processo de produção de outros bens de consumo industrializados, como um automóvel, por exemplo.

Para ser ter uma ideia do descompasso entre as distintas demandas, vale lembrar que o déficit habitacional brasileiro é de 5,5 milhões de domicílios, sendo que cerca de 90% deste total está situado na faixa de renda familiar de 0 a 3 salários mínimos, faixa amplamente composta por população com acesso precário ao mercado de trabalho, que vive de ganhos eventuais, atividades à margem do mercado formal, ou de programas de transferência de renda. A maior parte, segundo os critérios das instituições financeiras, não é sujeito de crédito, não tendo, portanto, acesso ao mercado imobiliário formal; suas alternativas habitacionais, até poucos anos, se limitavam àquelas oferecidas pelo mercado informal (favelas, loteamentos irregulares, cortiços) ou ocupações em áreas de risco, edifícios abandonados, etc.)

Por outro lado, a produção da habitação não se dá da mesma forma que a de outros bens de consumo produzidos industrialmente. Além de seu ciclo produtivo ser muito longo, comparativamente a outros bens, e de seu alto valor agregado, existe uma condicionante fundamental que é a sua absoluta dependência de um insumo muito particular que é a terra urbanizada.

A terra não é um insumo como o aço, a madeira ou o plástico, que podem ser produzidos industrialmente em larga escala e estar disponíveis para transformação em outros bens em qualquer parte do território. A terra, especialmente quando urbanizada e bem localizada, é escassa e relativamente irreproduzível. Por esta condição, seu preço no mercado é principalmente valorado não pela quantidade de material e trabalho nela adicionada, e sim por seus atributos de localização em relação a outros bens imóveis na cidade. Por ser um bem escasso, o seu preço se forma como em um leilão, sem manter uma relação direta com a composição dos custos envolvidos na sua produção. Sendo assim, a simples concessão de crédito, sem um devido investimento em produção de novas áreas urbanizadas ou a revitalização para adensamento de áreas degradadas ou subutilizadas, só faria aumentar o preço da terra inviabilizando ainda mais o acesso dos mais pobres a uma habitação digna.

Também não parece adequado afirmar que os programas habitacionais seguem a mesma cartilha desde os anos 40. Nas políticas tradicionais, entidades estatais cumpriam um importante papel na produção, desenhavam programas e projetos, atuavam como urbanistas e como construtores, especialmente com recursos do orçamento público. Funcionavam como provedores de habitações sociais para as famílias de baixa renda e faziam as vezes de entidades financeiras disponibilizando crédito para as famílias.

A partir dos anos 60, no rastro das reformas econômicas orientadas ao mercado e ao setor privado na América Latina por influência da “Escola de Chicago”, foram redefinidos os papeis dos setores públicos e privados na produção habitacional. O setor público assumiu o papel de gestor de um sistema de subsídios diretos à demanda e o privado a responsabilidade pela construção de habitações de interesse social, proporcionando crédito e financiamento em condições de mercado. No entanto, mesmo naqueles países onde a cartilha neoliberal foi seguida à risca, como é o caso do Chile, o sistema de crédito + subsídio não conseguiu alcançar os setores de mais baixa renda, sendo necessária a intervenção estatal com a contratação direta pelo estado de unidades habitacionais.

O Brasil, com o Programa Minha Casa Minha Vida, foi na mesma direção e segue este modelo híbrido que combina a produção de unidades habitacionais contratadas diretamente pelo Estado (vendidas a baixíssimo preço, ou mesmo doadas, para a faixa de 0 a 3 SM), com a produção de mercado para as faixas de 3 a 6 e 6 a 10 SM viabilizada pela concessão de crédito com taxas de juros diferenciadas para a oferta e subsídio direto à demanda.
 
Assim como no caso chileno, este modelo se mostrou muito eficiente para o alcance de metas quantitativas, geração de empregos e impulso da cadeia produtiva da construção civil; mas, por outro lado, apresentou problemas de natureza urbanística, arquitetônica e social, especialmente no estoque produzido para os estratos de mais baixa renda. Teve ainda um forte impacto sobre o mercado fundiário, provocando um acelerado aumento do preço da terra que exigiu recorrentes aumentos nos valores dos subsídios governamentais ofertados.

 As políticas habitacionais latino-americanas, via de regra, têm como fundamento o princípio de que cada família deve ser proprietária de sua habitação (“fazer do Chile um país de proprietários” era um slogan da ditadura Pinochet), na compreensão de que a casa própria desempenha um papel ideológico que transforma o trabalhador em “aliado da ordem”, não havendo incentivos em nossos países para a oferta legal de imóveis de aluguel. No mercado informal, no entanto, especialmente nas favelas, é crescente a oferta de unidades para aluguel; solução mais adequada para imigrantes recém-chegados em busca de trabalho e para jovens em início de suas vidas, fora a casa materna.

Há países que apostam em outras estratégias para garantir moradia para essa demanda não atendida pelo mercado imobiliário formal. Europa e América do Norte têm, na produção de unidades para aluguel, fortemente subsidiada e dirigida pelo Estado, a principal ferramenta para a solução do déficit habitacional. Mais recentemente, nestes mesmos países, e como política de Estado, muito se tem investido no fomento à produção de empreendimentos de renda mista que abrigam, sem diferenciação na aparência ou na qualidade da construção, famílias de distintas classes de renda no seu interior - uma política que tem produzido resultados muito positivos.

Na própria América Latina surgem iniciativas muito promissoras, como no caso colombiano, que apontam para a utilização articulada de instrumentos de política urbana que viabilizam, sem custo para a coletividade, a produção de solo urbanizado destinado a habitação social e de mercado integrada a espaços produtivos, culturais, educativos e de lazer, bem servidos por transporte e infraestrutura.

Políticas habitacionais baseadas na concessão de crédito e subsídios à demanda para aquisição de habitação de mercado são eficientes quando endereçadas a trabalhadores minimamente integrados ao mercado de trabalho formal, capazes de comprovação de renda regular, mas possuem limitações que as impedem de prover moradia adequada para as faixas de mais baixa renda da população. Um exemplo recente é o caso da Costa Rica. Este país, que historicamente mantinha taxas reduzidas de déficit habitacional (comparativamente aos demais da região centro-americana), assiste hoje a um rápido crescimento dos assentamentos informais no seu território, provocado por um crescimento dos níveis de pobreza de sua população e pela absorção de mão de obra imigrante com inserção precária no mercado de trabalho e sem acesso aos mecanismos de crédito oficiais.

A questão do déficit de moradias é complexa e não será equacionada sem uma adequada compreensão de suas condicionantes econômicas, sociais, políticas e culturais. Além disso, as especificidades do mercado imobiliário o distingue dos demais ramos de produção de bens de consumo; por este motivo, políticas que visam a garantia de uma habitação segura para as famílias de mais baixa renda deverão seguir caminhos distintos daqueles utilizados para se viabilizar o acesso a outros bens de consumo industrializados, como um carro zero, por exemplo.

Exemplos exitosos existem e estão disponíveis para serem conhecidos, avaliados e, se for o caso, adaptados à nossa realidade. O que não podemos é ficar presos a modelos únicos que desconsideram a diversidades das situações envolvidas. 

 Antônio Augusto Veríssimo, Maio de 2013  

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Grandes Projetos Urbanos: Parque das Nações, Lisboa

Deu no tvi 24
22-05-2013, por Claudia Costa

Parque das Nações, uma ilha de bem estar ou de caos urbano?
O Parque das Nações foi criado de raiz há 15 anos em Lisboa. Sendo uma zona sem paralelo na cidade, nomeadamente na ligação ao rio, não está a salvo de críticas. O «boom» de construção habitacional tornaram a zona numa das mais movimentadas de Lisboa, pelo menos, na hora de ponta. 

(..) Atualmente vivem na zona da antiga Expo mais de oito mil prédios onde moram mais de 14 mil pessoas, segundo os dados dos últimos Censos. Visto como muitos como uma zona nobre da cidade, especialmente para morar, o certo é que comprar casa no Parque das Nações continua a não ser para todas as bolsas. Atualmente o preço de um apartamento ronda os 2.685 euros por metro quadrado e das vivendas os 2.550 euros por metro quadrado, segundo a Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP).
(..) Para José Rio Fernandes, especialista em Urbanismo e Geografia Urbana da Universidade do Porto, o Parque das Nações não deixa de ser um projeto de sucesso, mas o que funciona «menos bem» é a «relação deste espaço com a envolvente», porque, considerou, «este espaço respira mal» com o resto da cidade e, constitui-se «quase como uma ilha, uma ilha de conforto e de qualidade e de elevadas densidades construtivas», disse à Lusa.
O especialista admite que existe ali construção em excesso e admitiu também que o planeamento daquele espaço esteve «muito condicionado por questões de natureza financeira». José Rio Fernandes defendeu ainda que a zona devia ser «menos shopping, mais comércio de rua, mais comércio independente e menos comércio de grande marca».

Já o arquiteto Manuel Salgado, que fez parte do plano de urbanização do Parque das Nações, defendeu que a construção podia ter ido ainda mais além, por exemplo, com implementação com uma urbanização de luxo. «Eram iniciativas que podiam ter sido muito importantes para requalificar a zona oriental e estender o "efeito Expo"», referiu à Lusa. (Continua)

Ver também
“Intervenções urbanas na cidade de Lisboa”. Pavilhão de Portugal (blog) 16-11-2009


 2013-05-24

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Chique no último

Deu n'O Globo
Em 18-05-2013, por Ines Garçoni
Vidigal atrai moradores ilustres e ganha status de favela chique

Foto (detalhe): Fabio Seixo / O Globo 
(..) No passado, o Arvrão foi quartel-general dos traficantes, e hoje é o principal exemplo do que pode se tornar o Vidigal num futuro muito próximo. As transformações impulsionadas pela instalação da UPP, que neste domingo completa 16 meses, ganharam ritmo acelerado nos últimos tempos.

Este ano, compraram casas no morro o artista plástico Vik Muniz, a produtora de cinema Jackie De Botton, o casal Cello Macedo e Zazá Piereck, do Zazá Bistrô e Devassa, e o empresário e consultor Rene Abi Jaoudi. Já estão em obras o hostel Favela Nova, com seis quartos, restaurante e clube de jazz, do casal Laetitia Lafayette e Lucas Tavares (ela francesa, e ele, carioca), e o hotel Mirante do Arvrão, da sociedade entre o arquiteto Hélio Pellegrino e o empresário Antônio Rodrigues, dono do Belmonte. Com cinco suítes, cinco quartos de camas múltiplas e um bar, trata-se do maior investimento privado na favela e deve ser inaugurado em julho. Além dos empreendedores, tem crescido o número de moradores egressos de outras paragens, atraídos por aluguéis mais baratos que os da “cidade grande” e pelo clima de interior, como o músico pernambucano Otto, o arquiteto paraibano Pedro Henrique de Cristo, o produtor cultural paulista James Cesari e a atriz carioca Nêga, entre outros. (Continua)


2013-05-20

sábado, 11 de maio de 2013

Quadros de uma exposição

Deu no Museum of the City of New York  23 jan-15 set 2015
http://www.mcny.org/exhibitions/current/Making-Room.html
Maquete da edificação sugerida
Making Room: New Models for Housing New Yorkers showcases innovative design solutions to better accommodate New York City’s changing, and sometimes surprising, demographics, including a rising number of single people, and will feature a full-sized, flexibly furnished micro-studio apartment of just 325 square feet – a size prohibited in most areas of the city.  Visitors to the exhibition will see models and drawings of housing designs by architectural teams commissioned in 2011 by Citizens Housing & Planning Council, in partnership with the Architectural League of New York. The exhibition also presents winning designs from the Bloomberg administration’s recently launched pilot competition to test new housing models, as well as examples set by other cities in the United States and around the world, including Seattle, Providence, Montreal, San Diego, and Tokyo. 
Graffitti do blogueiro perplexo sobre painel da exposição

Aproveitando o ensejo, não deixem de assistir a esta incrível filmagem da execução de Quadros de Uma Exposição, de Modest Mussorgsky (versão orquestral de Maurice Ravel), sob a regência de Carlo Maria Giulini - a inquestionável estrela do espetáculo.
Capa da 1a edição da obra




2013-05-11 (Saudade, velho; foste tão cedo!)

domingo, 5 de maio de 2013

Mirror mirror on the wall, who's the smallest and most profitable of them all?

Deu na Bloomberg Newsweek, em 14-03-2013*
por  Venessa Wong
Micro-Apartments in the Big City: A Trend Builds

Imagine waking in a 15-by-15-foot apartment that still manages to have everything you need. The bed collapses into the wall, and a breakfast table extends down from the back of the bed once it’s tucked away. Instead of closets, look overhead to nooks suspended from the ceiling. Company coming? Get out the stools that stack like nesting dolls in an ottoman. (...) And these boîtes aren’t just for singles. The idea is to be more efficient and eventually to offer cheaper rents.
Micro-apartments, in some cases smaller than college dorm rooms, are cropping up in North American cities as urban planners experiment with new types of housing to accommodate growing numbers of single professionals, students, and the elderly.
(..)
To foster innovation, several municipalities are waiving zoning regulations to allow construction of smaller dwellings at select sites. In November, San Francisco reduced minimum requirements for a pilot project to 220 square feet, from 290, for a two-person efficiency unit. In Boston, where most homes are at least 450 sq. ft., the city has approved 300 new units as small as 375 sq. ft. With the blessing of local authorities, a developer in Vancouver in 2011 converted a single-room occupancy hotel into 30 “micro-lofts” under 300 sq. ft. Seattle and Chicago have also green-lighted micro-apartments.
(..) 

E o benefício, como não poderia deixar de ser, é do usuário: praticidade, inovação e, eventually, aluguel mais barato. 


* Leia a íntegra do artigo em  http://www.businessweek.com/articles/2013-03-14/micro-apartments-in-the-big-city-a-trend-builds

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Remédio milagroso

Deu no Económico em 29/04/13
http://economico.sapo.pt/noticias/mercado-imobiliario-anima-wall-street_168066.html


Mercado imobiliário anima Wall Street

Os mercados norte-americanos abriram hoje em alta com os investidores optimistas em relação ao dados do mercado imobiliário nos EUA, que vão ser divulgados hoje, e com a possibilidade de o Banco Central Europeu anunciar uma descida da taxa de juro directora. (..)

Os investidores acreditam que o número de contratos de promessa de compra e venda de casas aumentou quase 1% em Março, mais um sinal de que o sector da construção está a recuperar nos EUA. (..)


2013-04-29

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A Outorga Onerosa em números: uma comparação Niterói-São Paulo

Caro leitor,

A certa altura deste artigo, está dito:
"Na ausência de dados da prefeitura de São Paulo (é muito difícil obter dados administrativos da aplicação da OODC nas cidades brasileiras), utilizarei os parâmetros das simulações de aplicação de OODC descritas pelo professor Paulo Sandroni em seu blog.(2) Caso eu venha a obter dados da prefeitura e eles me demonstrem a inconveniência desse procedimento, terei prazer em corrigir-me."
É disso que trata esse pequeno prólogo. Hoje, de posse de uma planilha completa de dados da Outorga Onerosa do Direito de Construir na cidade de São Paulo, devo admitir que os valores aqui estimados para a capital paulista são muito maiores do que os reais. Isto se deve ao uso dos valores de contrapartida extraídos dos exemplos puramente hipotéticos do Prof. Sandroni, cuja finalidade não era mostrar a ordem de grandeza dos valores arrecadados, mas apenas exemplificar a aplicação das fórmulas de cálculo. O erro, portanto, é exclusivamente meu. 

Sustento, entretanto, que o método por mim utilizado nesta comparação, baseado no princípio do "valor residual da terra", é válido, e que os dados da mencionada planilha me permitem estimar preliminarmente que os valores de OODC cobrados em São Pauo, são, de fato, bem maiores que os cobrados em Niterói, o que buscarei demonstrar em um próximo artigo. 

Em 12-07-2015, o blogueiro

Para um exame mais atualizado e completo do tema, leia também, neste blog:

"CEPAC e Outorga: primo rico, prima pobre - notas sobre as modalidades de recuperação de mais-valias do solo resultantes de acréscimos de edificabilidade"

*

Niterói é uma das cidades pioneiras na aplicação da Outorga Onerosa do Direito de Construir no Brasil. 

Não é pouca coisa num país cuja segunda maior metrópole, o Rio de Janeiro, há mais de 20 anos a prevê em seus Planos Diretores, mas nunca encontra o momento e o lugar certo de aplicá-la.

Justiça seja feita, portanto, aos profissionais urbanistas de Niterói, que há anos se dedicam a pôr em prática, divulgar, defender e aperfeiçoar esse relevante instrumento de financiamento urbano baseado na recuperação da renda da terra. 


(Este reconhecimento não é extensível aos prefeitos e maiorias parlamentares da cidade, que vejo como responsáveis pelo que a OODC niteroiense tem de pífio e até de enganoso; penso que eles a têm usado como conveniente cobertura para uma política de adensamento construtivo que só beneficia proprietários e incorporadores)


Este breve artigo tem por finalidade estimar, com base no método de cálculo da valorização por acréscimo de edificabilidade discutido na postagem anterior e numa “curva de renda” por mim desenvolvida, em caráter experimental (um avaliador o faria, certamente, com muito mais segurança e competência), a dimensão dos valores cobrados por Outorga Onerosa em Niterói.

Analisaremos dois casos de cobrança de OODC em empreendimentos multifamiliares recém entregues nos bairros de Jardim Icaraí e Santa Rosa, comparando-os entre si e com informações disponíveis para a cidade de São Paulo. Os empreendimentos são o Tour de Renoir, à rua Vereador Duque Estrada 39, Santa Rosa, e o Orchestra, à rua João Pessoa 95, Jardim Icaraí. 
 

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Além dos indispensáveis dados de mercado dos dois empreendimentos, por mim recolhidos e temporalmente ajustados, faremos uso de dados coletados pelo professor Fernando Valverde Salandia junto à prefeitura de Niterói, disponíveis em sua apresentação "A experiência de Niterói, RJ, com a Outorga Onerosa do Direito de Construir". (1)

Na ausência de dados da prefeitura de São Paulo (é muito difícil obter dados administrativos da aplicação da OODC nas cidades brasileiras), utilizarei os parâmetros das simulações de aplicação de OODC descritas pelo professor Paulo Sandroni em seu blog.(2) Caso eu venha a obter dados da prefeitura e eles me demonstrem a inconveniência desse procedimento, terei prazer em corrigir-me.

Os fatos

Na mencionada apresentação, o professor Fernando Valverde nos oferece os seguintes dados sobre a aplicação da OODC nos empreendimentos em análise: 


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Temos, portanto, para cada caso, o valor total da contrapartida aplicada e o valor da contrapartida por m2 excedente ao Coeficiente Básico. 

Como podemos, agora, apreciar o significado dessas contrapartidas por Outorga Onerosa do Direito de Construir como aplicação da política de recuperação da valorização / renda do solo?

A teoria 

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Recapitulemos o esquema de repartição da renda do solo na indústria da incorporação imobiliária, discutida em postagem anterior deste mesmo blog. A renda total gerada no empreendimento, a ser repartida entre o proprietário do solo e o incorporador segundo o poder de barganha de cada um, é o resíduo da subtração, à receita total (Valor Geral de Vendas - VGV), dos custos totais de construção e comercialização e do custo de capital representado pela Taxa Mínima de Atratividade – TMA. Contudo, em um mercado onde vige a Outorga Onerosa do Direito de Construir, a repartição do valor residual entre proprietário e incorporador só poderá ser feita após a dedução do valor da contrapartida - que é a parte da coletividade na repartição da renda do solo. (É claro que se o incorporador adquiriu o terreno antes da introdução da OODC ou da fixação do valor da contrapartida, terá de arcar sozinho com o "prejuízo" - um justificado ônus sobre a prática de manter lotes de "engorda").

Do esquema teórico da repartição da renda decorre a pergunta óbvia: a que proporção da renda total do solo correspondem as contrapartidas cobradas pela municipalidade de Niterói nos dois casos em discussão? 

A análise  

É para estimar essa proporção que vimos desenvolvendo uma metodologia baseada no método residual dedutivo de avaliações imobiliárias – que não é senão o “espelho” da estrutura econômica dos empreendimentos. Essa estimativa tem duas dimensões inseparáveis: a OODC como proporção da renda excedente ao coeficiente básico, que é aquela que o Estatuto da Cidade define como passível de cobrança de contrapartida; e a OODC como proporção da renda total, que, devido aos diferentes tamanhos de empreendimento, preços de venda médios do m2 privativo e coeficientes máximo e básico estabelecidos pelas legislações, reputo como o único termo possível de comparação entre as políticas municipais de recuperação da valorização por acréscimo de edificabilidade e, por isso mesmo, o verdadeiro “preço” da Outorga Onerosa do Direito de Construir.  

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Para o cálculo da contrapartida como proporção da renda excedente e da renda total, já havíamos deduzido as expressões algébricas ao lado. 

Para estimar o valor residual, desenvolvemos, em caráter experimental, uma “curva de renda”
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baseada em pesquisa de preços do m2 privativo em lançamentos recentes na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e numa combinação/ adaptação / atualização de parâmetros propostos pelo engenheiro-avaliador Milton Mandelblatt.(3)


A aplicação dessa metodologia aos casos escolhidos em Niterói nos fornece os seguintes resultados: 

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Qualquer leitor minimamente familiarizado com a OODC – assim como o leigo interessado na matéria – há de se perguntar: por que a recuperação da renda nos dois casos é tão díspar se os dois empreendimentos são tão similares em termos do produto imobiliário, do seu preço de venda por m2 privativo e da cota de terreno que esse preço contém?

Esta é uma questão inteiramente pertinente, uma vez que levanta o problema crucial da confiabilidade do método de determinação de OODC utilizado em Niterói. Os dados coligidos pelo professor  Valverde mostram inequivocamente que a disparidade de valores de contrapartida é uma das características dominantes da aplicação da OODC na cidade. A outra é, precisamente, o seu baixíssimo valor relativo, objeto desta postagem.

Consideremos agora, portanto, o quadro resultante dessa mesma metodologia aplicada sobre os parâmetros das simulações de Outorga Onerosa na cidade de São Paulo, apresentadas pelo professor Paulo Sandroni no artigo "Captura de Mais Valias Urbanas em São Paulo através do binômio Solo Criado/Outorga Onerosa: análise do impacto do coeficiente de aproveitamento básico como instrumento do Plano Diretor de 2002", disponível em seu blog.(2)

Os preços médios de m2 privativo para os dois bairros foram por mim deduzidos de pesquisa na Internet e ajustados para março de 2012. A quantidade de m2 privativos foi tomada como igual ao de m2 brutos construídos, com base na hipótese simplificadora de que as taxas m2 construído/m2 privativo e m2 computáveis/m2 construído se compensam. Assumo, também, que a "curva de renda" da Região Metropolitana do Rio de Janeiro se aplica à de São Paulo. Esse inevitável conjunto de simplificações (produto da falta de dados da própria municipalidade) exige que consideremos os valores resultantes como meras ordens de grandeza! 

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As proporções encontradas nesta “simulação da simulação” da OODC de São Paulo são verdadeiramente surpreendentes para os padrões brasileiros e - por que não admitir - para  as expectativas deste blogueiro também. Porém, a julgar pelo conjunto de informações aduzidas pelo prof. Sandroni no artigo "CEPACS: Certificates of Additional Construction Potential: A New Financial Instrument of Value Capture in São Paulo", também encontrável em seu blog (4), essas proporções são inteiramente compatíveis com a tradição paulistana oriunda das extintas Operações Interligadas, cuja lei determinava que à administração pública deveria caber um mínimo de 50% do incremento de valor criado pelo benefício concedido - no nosso caso, aumento de edificabilidade - ao empreendedor. Essa proporção é mantida na Operação Urbana Água Espraiada e chega a 60% no caso da Operação Urbana Água Branca.

Os por quês 

Por que a recuperação da renda em Niterói é tão flagrantemente menor do que aquela que se pratica na cidade de São Paulo? Por que Niterói se contenta com fatores de recuperação da valorização e taxas de recuperação da renda de até 1/10 de suas homólogas paulistanas

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É  difícil responder a essa pergunta. Não pretendo argüir que o problema está nas fórmulas de cálculo – embora haja, a meu juízo, sérios problemas teóricos e práticos com a maioria das fórmulas de cálculo em uso no Brasil, inclusive a de São Pauloque não apenas são "cegas" para a relação entre a contrapartida e a renda como podem gerar valores absurdamente elevados quando despidas de seus "fatores de ajuste" - como mostra, aliás, o professor Valverde em seu estudo da OODC em Niterói. Voltarei ao tema, com mais detalhes, em algum momento futuro.

Na verdade, a fórmulas têm um papel relativamente secundário na questão do valor da contrapartida, precisamente porque não são exatamente fórmulas de cálculo: são como algoritmos de determinação do valor da contrapartida, usados para atingir ordens de grandeza que satisfaçam à decisão política que tenha tomado a municipalidade a respeito de quanta renda pretende recuperar. 

Dito em outras palavras, o valor da contrapartida por OODC não se "calcula" como o volume de um cilindro ou a velocidade final de um corpo em queda livre. Ele é uma decisão de política urbana que pode representar qualquer fração entre 0% e 100% da renda da terra gerada nos empreendimentos imobiliários (valor residual do terreno), a totalidade da qual não tem nada a ver com remuneração do investimento produtivo privado, mas é puro valor de localização, isto é, criação coletiva baseada na disponibilidade de infraestrutura, equipamentos e serviços públicos.

Não existe, tampouco, explicação econômica para a disparidade de valores cobrados por OODC nas cidades brasileiras. O lucro imobiliário (isto é, o lucro excedente ao retorno de capital esperado) não é mais crucial para as empresas fluminenses, mineiras e potiguares do que para as paulistanas – todas, aliás, cada vez mais "nacionais", quando não "internacionais".

Embora a crise de 2008 e suas sequelas tenham deixado claro que o papel da renda imobiliária é cada vez mais crítico nas economias nacionais e mundial - razão pela qual a resistência empresarial às políticas de recuperação da renda tende, a meu ver, a crescer, não a diminuir -, a não arrecadação, ou a baixa arredação da OODC no âmbito das cidades explica-se, antes de tudo, pelo surrado chavão: a (falta de) vontade política dos governos municipais. 

De todo modo, São Paulo é a prova empírica de que uma OODC de valor equivalente a 50% da valorização sobre o coeficiente básico 1 não afeta em nada o ritmo da incorporação imobiliária, que funciona à base de sobrelucros só limitados pela capacidade de endividamento da população adquirente de imóveis

Se todas as cidades brasileiras convergissem para a recuperação de 50% do valor acrescido pela edificabilidade excedente ao Coeficiente Básico =1, como advoga a tradição paulistana, estariam dando um grande passo em favor do autofinanciamento de suas infraestruturas básicas.


Critérios alternativos para a cobrança de OODC em Niterói


Para dar uma dimensão do potencial de recuperação de renda do solo por OODC em Niterói, proponho agora utilizar o método de estimação da valorização e da renda para traçar critérios alternativos de determinação do valor da contrapartida. 

Nas tabelas abaixo, indico os valores de OODC por m2 construído excedente e total, que, nos casos analisados, resultariam de distintas políticas de recuperação da valorização.  A coluna assinalada em cinza contém os parâmetros da OODC efetivamente aplicada. As demais contêm os valores de OODC por m2 contruído excedente que teriam resultado de distintas combinações de parâmetros de política urbana: fatores de recuperação da valorização variando entre 20% e 50% com Cb =2 e, finalmente, o critério "paulistano": coeficiente básico = 1 e fator de recuperação da valorização = 50%. 

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No caso do Orchestra, a diferença estimada entre o efetivamente arrecadado e a receita que teria resultado da aplicação do critério "50% da valorização acrescida ao coeficiente básico = 1"  (em termos de renda total atualizada, que é o preço de venda da terra aos adquirentes dos novos apartamentos, não de parte da renda, como é o caso do valor de mercado do terreno - 50% , em tese - ou, ainda pior, da representação desatualizada deste último que é o valor venal para fins de IPTU) monta a quase inacreditáveis R$ 8.436.000,00

No caso do Tour de Renoir, um empreendimento mais representativo da média dos lançamentos em Jardim Icaraí, a receita total poderia alcançar a marca dos R$ 3.000.000,00. Para cada 50 empreendimentos anuais, a aplicação deste critério - que propomos como "critério de convergência para as cidades brasileiras" - teria representado um aporte da ordem de R$ 150.000000,00 ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano (o equivalente a 2.173 apartamentos do programa Minha Casa Minha Vida para famílias com rendimentos até 3 salários mínimos) contra cerca de R$ 25.000.000,00 arrecadados na cidade de 2004 a outubro de 2011 - segundo nos informa o professor Valverde.


Este valor, à primeira vista estratosférico para os padrões de OODC em uso no Brasil, pode ser, no entanto, perfeitamente compatível com a imensa sobrecarga  que os coeficientes de aproveitamento de terreno de Niterói impõem à sua infraestrutura e redes de serviços urbanos. (5)


É claro, cada administração municipal tem a sua circunstância política. Mas, dentro de certos limites, sempre é possível escolher. As tabelas acima mostram que a pior opção não é necessariamente a única factível.

2013-04-22
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NOTAS

(1) Valverde Salandia, Luis Fernando, “A experiência de Niterói, RJ, com a Outorga Onerosa do Direito de Construir”, Curso de Regulamentação e Implementação de Operações Urbanas Consorciadas e Outorga Onerosa do Direito de Construir, governo Federal do Brasil e Lincoln Institute of Land Policy, São Paulo, 25 de novembro de 2011


(2) Sandroni, Paulo, "Captura de Mais Valias Urbanas em São Paulo através do binômio Solo Criado / Outorga Onerosa: análise do impacto do coeficiente de aproveitamento básico como instrumento do Plano Diretor de 2002". http://sandroni.com.br/?page_id=301 

(3) Abuhnaman, Sergio, Curso Básico de Engenharia Legal e Avaliações, Pini, 1999

(4) Sandroni, Paulo, "CEPACS: Certificates of Additional Construction Potential. A New Financial Instrument of Value Capture in São Paulo",  http://sandroni.com.br/?page_id=310, também publicado em “Municipal Revenues and Land Policies”, Ed. Gregory Ingram and Yu-Hung Hong. Lincoln Institute of Land Policy, Cambridge, Mass. 2010

(5) Convido o leitor a ver imagens e dados impressionantes da atual superintensificação do uso do solo urbano nas cidades brasileiras em
http://oglobo.globo.com/pais/verticalizacao-altera-paisagens-de-cidades-do-norte-do-nordeste-8174401