quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Dinheiro mesmo e nada mais!


Isto é Dinheiro 17-12-2023
https://istoedinheiro.com.br/setor-da-construcao-pede-que-zoneamento-em-sp-libere-mais-predios-e-mais-altos/

Montagem:Àbeiradourbanismo

"Aumentar a oferta de moradia", "reverter a periferização", "diminuir os tempos de viagem ao centro da cidade", "controlar o espraiamento urbano", "evitar que as pessoas sejam obrigadas a morar em bairros distantes dos polos de emprego" são mantras com que a indústria da incorporação  imobiliária brasileira vem tentando obter as boas graças da opinião pública para a ofensiva desencadeada nos últimos anos contra os esforços de planejamento e regulação urbana materializados nos Planos Diretores municipais das grandes cidades. 

Trata-se, no entanto, de algo bem mais simples: a competição cada vez mais acirrada entre capitais de investimento pela rentabilidade de suas operações de financiamento imobiliário.

É o que se depreende da preocupação manifestada pelo CEO J Melnik, da incorporadora Melnik, que acabara de abrir seu capital na Bolsa de Valores, ao secretário municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade de Porto Alegre, Germano Bremm, numa live transmitida pelo Sindicato das Indústrias da Construção Civil do Rio Grande do Sul em 28-10-2020:

“O descrédito que existe entre grupos de fora do Estado é tão grande que tivemos que fazer uma série de defesas em relação a nossa praça. Eles [os fundos que investem em empresas de capital aberto] não acham normal ter que fazer tantos lançamentos, mas o VGV que a gente consegue fazer é infinitamente menor que outras capitais. Enquanto outras empresas precisam fazer três, nós temos que fazer dez”.[1]

A queixa de que em Porto Alegre a incorporadora precisava de três lançamentos para perfazer o Valor Geral de Vendas de um único lançamento em outras praças talvez se refira ao mercado paulistano, onde o Plano Diretor, para promover o adensamento urbano ao longo dos eixos servidos pelo Metrô, permitiu a construção de grandes torres de apartamentos de pequeno tamanho e altíssima rentabilidade por m2 privativo.

Não se trata aqui, portanto, da competição abstrata entre margens de lucro de incorporadoras de distintas praças, mas dmargem de lucro que incorporadoras de distintas praças podem oferecer a capitais de investimento que não são de praça alguma: circulam em todas as metrópoles do país e, quem sabe, até do exterior; capitais cujo objetivo é, meramente, a sua própria valorização, e em nenhum caso a oferta de moradias necessárias para a redução do déficit habitacional, o combate à periferização, a revitalização dos centros urbanos obsolescentes, a redução das distâncias aos locais de trabalho etc.

Mais adiante na mesma live, o CEO lança mão do mantra mais popular entre os adeptos do liberalismo urbanístico: o “adensamento”:

“Se não mexermos no adensamento, a cidade vai consumir seu solo rapidamente. Ela tem um limite”, comentou Melnick. “Então, talvez, nós possamos, em uma janela de oportunidade que estamos vivendo, que é o entendimento do lado da Prefeitura mais alinhado com o nosso tema, resolver esses gargalos e destravar a cidade para o caminho do adensamento”.

Se alguma dúvida pairava sobre a existência de uma "ofensiva política contra os Planos Diretores", ou pela subordinação de suas atualizações ao comando das incorporadoras, ela desaparece ante a frase “uma janela de oportunidade que estamos vivendo, que é o entendimento do lado da Prefeitura mais alinhado com o nosso tema”.

À parte este aspecto, que diz respeito ao ambiente político em que se dá o ciclo atual de "revisão" dos Planos Diretores e daí a um aspecto que sempre faço questão de ressaltar - a turbulência e a incerteza inerentes ao exercício da nossa profissão -, eu observo que a reivindicação do "adensamento” característica do urbanismo liberal não se refere ao adensamento construtivo distribuído por toda a cidade, para todas as faixas de demandantes de moradia - uma cidade compacta e relativamente homogênea -, tampouco o adensamento associado aos serviços de transporte de alta capacidade (metrô, trem e corredores de ônibus), como adotado pelo Plano Diretor Estratégico paulistano de 2014, mas a um adensamento aleatório - que pouco adensará a cidade com um todo, é preciso dizer - pela via da multiplicação de torres de apartamentos nos nichos urbanos de solo-localização promovidos pelos próprios incorporadores e valorizados pelos adquirentes de altos e médios rendimentos. Em suma: uma senha para a política urbana do "liberou geral".

Não poderia ter sido mais claro o presidente da Federação Internacional Imobiliária (Fiabci) no Brasil, Flávio Amary, em entrevista ao site Terra no dia 20 deste mês. Indagado sobre a lei de zoneamento em São Paulo, recém-aprovada em primeira votação na Câmara Municipal, ele declarou:

O balanço é positivo, porque nós teremos uma regra mais clara. Mas estamos ainda longe de contar com um planejamento urbano que busque ter um adensamento mais profundo. Sem esse adensamento, a cidade vai se espraiando, as pessoas estão indo para moradias cada vez mais distantes da região central. Em outras cidades do mundo tem prédios de 30 a 40 andares, enquanto nós aqui estamos discutindo se pode ter prédio de 7 ou 8 em determinadas regiões. Com um gabarito nesse nível, a situação me preocupa. O adensamento permite redução de custos com infraestrutura, tem melhora na qualidade de vida, as pessoas perdem menos tempo com deslocamento e tem mais acessos a transporte. Ainda vejo com preocupação os problemas que o baixo adensamento vai continuar provocando em São Paulo no longo prazo. [3]

Concluo citando trecho de uma postagem por mim escrita e publicada neste blog em 13-04-2022 sob o título "Solo urbano: escassez e planejamento": [4]

(..) A alegação recorrente de que as restrições normativas "encarecem o solo por limitar a oferta" é uma falácia que esconde a natureza segmentada do mercado imobiliário e o papel preponderante dos proprietários - via de regra os próprios incorporadores - na limitação da oferta de terrenos. Terrenos no Centro urbano só excepcionalmente são destinados, pela via do mercado, a imóveis residenciais de "baixo padrão"; indiferente à imensa procura dos demandantes de poucos recursos por residências nessa parte da cidade, seu proprietário tende a retê-lo à espera da oportunidade de cedê-lo ao empreendimento mais rentável que fareje no horizonte, que em economia da urbanização atende pelo nome de "maior e melhor uso" - comercial-financeiro ou, no melhor dos casos, residencial rotativo de área mínima, alta densidade e elevado preço por m2. 

O mesmo vale para outras áreas da cidade. Bairros pericentrais com boas condições de acessibilidade ao centro comercial e de negócios podem passar anos "reservados" para o uso residencial de segmentos populacionais mais abastados, independentemente da pressão de demanda de segmentos menos "aptos" em termos de oferta de renda. (..) a reivindicação de “liberação da oferta” do jugo das restrições normativas não visa a produção de habitações para quem precisa, mas concentrar a produção imobiliária destinada a cada segmento da "demanda efetiva" em uma quantidade menor de terrenos - para aumentar a rentabilidade de cada empreendimento! (..)

2023-12-27 

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[1]“Como um restrito grupo de empresários mudou a lógica do planejamento urbano de Porto Alegre”. Sul21 07-11-2023, por Lidiane Blanco
https://sul21.com.br/especiais/como-um-restrito-grupo-de-empresarios-mudou-a-logica-do-planejamento-urbano-de-porto-alegre/

[2] Idem.

[3] “'As pessoas estão indo para moradias cada vez mais distantes da região central', diz ex-Secovi”. Terra 20-12-2023, por Circe Bonatelli
https://www.terra.com.br/economia/as-pessoas-estao-indo-para-moradias-cada-vez-mais-distantes-da-regiao-central-diz-ex-secovi,ac675a27cc83a0bccd001976769cde293473tlgz.html

[4] "Solo urbano: escassez e planejamento". À beira do urbanismo 13-04-2022, por Pedro Jorgensen
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2022/04/solo-urbano-desmistificar-escassez.html

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Tarifa zero – de nota em nota*


Estado de S Paulo 16-12-2023
https://www.estadao.com.br/sao-paulo/tarifa-zero-no-onibus-vale-a-pena-o-passe-livre-no-transporte-publico/

Montagem: Àbeiradourbanismo
No debate sobre a tarifa zero, eu parto do caráter socialmente determinado da estrutura espacial urbana na economia de mercado.

Os comércios se aglomeram da forma mais compacta possível no ponto mais acessível da rede urbana porque as famílias, gastando o mínimo possível com deslocamentos (menor distância e menos viagens perdidas), podem comprar mais com o que sobra do aluguel! Mas ao passo que as vantagens econômicas da localização relativa dos negócios e das famílias são recíprocas e, no melhor dos casos, repartidas entre os dois grupos - não esqueçamos que os negócios em geral têm a vantagem adicional nada desprezível da máxima disponibilidade e menor custo da força de trabalho -, ao final a maior parte, quando não a totalidade, do custo do deslocamento recai sobre as famílias, pelo simples fato de que, como são elas que têm de se deslocar, assume-se que os deslocamentos são assunto do seu exclusivo interesse. Elas que paguem o transporte, os negócios não têm nada com isso!

O problema da cobertura da tarifa zero nos transportes é que as possíveis rubricas, ou fontes de recursos - impostos municipais, impostos estaduais, transferências federais, publicidade etc, - afetam desigualmente os distintos segmentos da população e da própria administração pública, gerando inevitáveis disputas. No fundo, trata-se de um debate de tipo tributário: qual parcela do custo de mobilização das famílias para o trabalho e o consumo será paga pelas próprias famílias, qual será paga, e como, pelos distintos ramos de negócios - a começar, quero crer, pelos rentistas.

Em suma, é um problema de economia política.

Nas grandes metrópoles, os sistemas de transporte urbano são inapelavelmente deficitários pela simples razão de que a tarifa que cobre os custos de implantação e operação já não cabe, faz muito tempo, no bolso da imensa maioria dos usuários. A circulação é a mãe de todas as deseconomias metropolitanas e o subsídio coletivo à mobilização - e ao custo! - da força de trabalho a primeira lei do transporte urbano.

A matéria do Estadão não me deixa mentir: hoje, em São Paulo, só nos transportes por ônibus 

“a maior parte da tarifa já é paga pela Prefeitura. (..) Até novembro, foram pagos R$ 5,3 bilhões em subsídios às companhias de transporte coletivo".

A ideia, insistentemente difundida pela própria imprensa, de que a privatização reduz o déficit dos grandes sistemas de transportes é um embuste: os privados não arcam com os custos de implantação e aquisição de material rodante e a fragmentação do sistema gera desarranjos em cadeia - crises de rentabilidade, renegociações, integração física, operacional e tarifária entre distintas concessões, contestações judiciais, desistências - que tendem a torná-lo ainda mais caro a longo prazo.

E aqui chegamos ao problema crucial: em países, como o nosso, em que as conquistas do Estado do bem-estar são, para dizer o mínimo, precárias - com a honrosa e intrigante exceção do SUS, há poucos dias saudado por ninguém menos que Bill Gates como um exemplo para todos os países do mundo - os transportes metropolitanos têm constituído, nos últimos 30 anos, um maná lucrativo pela via das concessões, um vasto mercado de oportunidades de gestão monopolista de pedaços das redes e seus componentes - a operação, de preferência - às expensas do conjunto.

Muito me espantaria se no Brasil, onde, não faz muito tempo, aprovamos a privatização do saneamento básico, passássemos a estatizar, para operação direta ou contratada, os transportes urbanos com tarifa zero para a população trabalhadora. 
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* Esta postagem contém um apanhado de ideias formuladas em minhas pesquisas sobre a estrutura urbana e passagens de postagens anteriores sobre a “tarifa zero”, acessíveis pelos marcadores do blog.

2023-12-20

sábado, 25 de novembro de 2023

Apontamentos: Passos 2016 e a formação de Belo Horizonte


PASSOS D, “A formação do espaço urbano da cidade de Belo Horizonte: um estudo de caso à luz de comparações com as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro”. Mediações - Revista de Ciências Sociais, UEL, v. 21, n. 2, p. 332–358, 2016.
https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/22406/pdf

RESUMO (da autora)

O presente trabalho procura analisar como se constituiu o espaço urbano e social da cidade de Belo Horizonte, no final do século XIX e início do século XX, à luz de comparações com as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro no mesmo período. Inaugurada em 1897, a nova capital mineira se tornou a primeira cidade planejada do país. O objetivo deste ensaio é o de explicitar como as ideias republicanas inspiraram a experiência urbanística da cidade, seu aspecto modernizante e ao mesmo tempo sua estratificação social, que classificava e hierarquizava o território belorizontino no intuito de assegurar as condições de vida para uma população em rápido crescimento, adequando a cidade aos negócios, e criando mecanismos de controle social para a população carente e trabalhadora de Belo Horizonte.



Ótima proposta - comparar a formação do espaço urbano de Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro.

Inteiramente focado, porém, como muitos textos no campo da História Urbana brasileira, na ideologia subjacente aos projetos modernizadores de inícios do século XX - como se fosse minimamente provável haver diferenças substanciais, sob este aspecto, em três das principais unidades territoriais da conservadoríssima República recém-criada -, o artigo perde a chance de abordar um aspecto pouquíssimo tratado e, a meu juízo, da maior relevância, que tento resumir numa pergunta:

Como podem as três maiores metrópoles brasileiras dos anos 1950-1975 apresentarem, como diz Villaça em Espaço Intra-Urbano no Brasil (1998), “importantes traços comuns de organização intra-urbana” se um século antes eram, respectivamente, (1) uma cidade inexistente, (2) um "arraial de sertanistas"* e (3) a capital de um império de 8 milhões de km2?

2023-11-29

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* “Nos primeiros anos dos Oitocentos, a cidade possuía ainda feições claras de um arraial de sertanistas, que funcionara como entreposto comercial.” ASSUNÇÃO P, “As condições urbanas da cidade de São Paulo no século XIX”. Histórica (São Paulo. Online) , v. 37 , p. 3 - , 2009.
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao37/materia03/texto03.pdf

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Oil folly


La Vanguardia 10-11-2023
https://www.lavanguardia.com/dinero/20231110/9353511/neom-arabia-saudi-ciudades-futuro-proyecto-the-line.html

"(..) ‘Este es el manicomio mejor pagado del mundo’, resume un empleado de Neom, cuyo nombre debe permanecer oculto. ‘La locura toma forma a medida que se hace camino’, defienden desde OMA, uno de los grandes despachos de arquitectura contratados para imaginar The Line. (..)"

2023-11-22

sábado, 18 de novembro de 2023

Agora vai?


Carta Capital 04-11-2023
https://www.cartacapital.com.br/politica/ministro-das-cidades-assume-entidade-internacional-de-habitacao/

Montagem: Àbeiradourbanismo
Se faltava um empurrão, ele acaba de ser dado.

A indicação de Jáder Filho, Ministro das Cidades 'da cota do PMDB', para presidir o Fórum de Ministros e Máximas Autoridades de Habitação e Planejamento Urbano da América Latina e do Caribe, que traz a sigla orwelliana MINURVI, é a senha para que todos os latinoamericanos e caribenhos direta e indiretamente interessados na luta pela moradia social, a começar pelos próprios movimentos cidadãos, cuidem de organizar a sua própria entidade internacional, autossustentada e independente de Estados, governos e agências multilaterais.

2023-11-19

domingo, 12 de novembro de 2023

Os dois lados da moeda


The Guardian 01-11-2023
https://www.theguardian.com/uk-news/2023/nov/01/london-financial-district-to-receive-11-extra-towers-by-2030


Cara
"(..) A concentração do crescimento urbano nas grandes metrópoles nacionais não é uma opção cultural, mas uma imposição da competição econômica global - que continuará tão ou mais encarniçada do que antes. (..) Os grandes proprietários de escritórios e terrenos em localizações centrais hipervalorizadas (CBDs) não se renderão, portanto, tão facilmente. E eles podem esperar. Se a recuperação econômica acontecer, ainda que lentamente, os escritórios acabarão sendo ocupados mesmo que parte dos trabalhadores permaneçam em home-office – que, aliás, tende a ser apenas parcial. Pode haver um período relativamente longo de altas taxas de vacância e alguma baixa de preços e alugueis. Mas a conversão desses edifícios para habitação pela via do mercado é muito cara para tornar-se lucrativa e a opção de produzir moradia nova nessas localizações só atende a uma parcela bastante específica e relativamente restrita da demanda. (..) O que me parece provável (..) é que toda essa crise, que traz consigo o aumento da pobreza e da insegurança laboral, esteja acelerando processos de deterioração e abandono progressivo de edifícios comerciais situados em localizações "sub-prime" dos grandes centros. E nesse caso, como sabemos, ou as prefeituras intervêm a tempo para transformá-los em habitação decente necessariamente subsidiada ou eles acabarão sendo ocupados como habitação precária." *


Coroa
Pelo andar da carruagem**, são 11 torres comerciais adicionais a serem retrofitadas, digamos em 2040, para o uso residencial ou misto a preços de mercado, com generosos subsídios públicos.

2023-11-05

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* “15 minutos de prudência”, À beira do urbanismo 18-05-2021

** “Biden administration pushing cities to convert empty offices into housing”, Business Report (Associated Press) 27-10-2023
https://www.businessreport.com/realestate/biden-administration-pushing-cities-to-convert-empty-offices-into-housing

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Paula 1955: A segunda fundação de São Paulo


PAULA E S de, “A segunda fundação de São Paulo”. Revista de História v. 10, n. 21-22, p. 53-53, 1955
https://www.revistas.usp.br/revh.../article/view/36096/38817

Ferrovia Santos-Jundiaí
(..) Além de certas cidades industriais inglêsas, só o caso de Chicago ou de Nova York pode ser comparado ao de São Paulo, que pertence à mesma família histórica americana da qual Vidal de la Blache na sua obra póstuma (Principes de Geographie Humaine) não teve tempo de nos dar uma imagem de conjunto. (..)

Não é da segunda fundação da vila de São Paulo de Piratininga que vamos tratar, bem entendido, mas sim do momento em que São Paulo passou de um conglomerado urbano a uma grande cidade. (..) Não se deu atenção a um fenômeno tão interessante como o nascimento de São Paulo, aglomeração urbana. Lastimamos não ter uma palavra exata para distinguir a cidade das aglomerações enormes de hoje em dia. (..)

Meu especial interesse por este artigo de 1955 provém da admissão, explícita na ideia da “segunda fundação de S Paulo”, de que a evolução das cidades admite “saltos” produzidos por mudanças bruscas em suas condições de existência - algo que muitas vezes não é levado em conta nos textos de urbanismo.

São Paulo, ao contrário de Salvador, Recife e, principalmente, Rio de Janeiro, não teve tempo de se desenvolver como capital comercial-escravista: em pouco mais de 50 anos, digamos entre 1860 e 1920, praticamente saltou da condição de entreposto comercial com aspecto de arraial de sertanistas* para a de mais importante metrópole capitalista do nosso país.

Não por acaso a cidade é comparada, em vários testemunhos históricos e sob distintos aspectos, com Chicago, que 
de town de 350 almas reconhecida em 1833 e city de 4.170 residentes instituída em 1837, passou, em 1900, à condição de centro metropolitano - comercial, industrial e financeiro - de 1,7 milhões de habitantes!**

2023-11-08

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* “Nos primeiros anos dos Oitocentos, a cidade possuía ainda feições claras de um arraial de sertanistas, que funcionara como entreposto comercial.” ASSUNÇÃO P, “As condições urbanas da cidade de São Paulo no século XIX”. Histórica (São Paulo. Online) , v. 37 , p. 3 - , 2009.
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao37/materia03/texto03.pdf

** Para mais informações sobre a origem de Chicago, leia neste blog: “Chicago, século XIX: em busca do Grid (1)”
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2019/08/chicago-seculo-xix-em-busca-do-grid-1.html

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Tecnofeudalismo imobiliário?


Financial Times 23-10-2023
https://www.ft.com/content/ad4f17a9-9418-457a-9fa3-9f0ec582fde6

Montagem: Àbeiradourbanismo
Ou seja, o livre mercado imobiliário é aquele em que os preços, em vez de caírem por força da concorrência, estão sempre subindo por efeito da meticulosa administração privada da escassez constitutiva do mercado de solo urbano.

Associações do mercado imobiliário global com o “tecnofeudalismo” de Varoufakis, ou, como me parece mais correto, com o “capitalismo tecnofeudal” do século XXI, são 100% procedentes.

A propósito, ofereço ao leitor a nota publicada neste blog em 06-08-2021 sob o título "Desmercantilização planetária". Acesse pelo link:

https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2021/08/desmercantilizacao-planetaria.html

2023-11-01

domingo, 29 de outubro de 2023

Flatiron retrofit

 

Fonte: https://www.facebook.com/groups/2142240399343434

Inaugurado em 1902, o Flatiron Building foi um dos primeiros arranha-céus construídos em Nova York, mais exatamente entre a 5a Avenida, a Broadway e a 23rd St. Um dos mais altos do mundo à época de sua inauguração, com 87 metros de altura e 22 andares, acabou dando nome ao bairro onde está situado (Flatron District). Foi inscrito no Registro Nacional de Lugares Históricos em 1979 e designado Marco Histórico Nacional dez anos depois.

Projetado pelo arquiteto e urbanista Daniel Burnham no estilo Beaux-Arts, com fachada de calcário e terracota dividida em base, fuste e capitel, não foi, contudo, o primeiro do seu gênero: embora menores do que o Flatiron, o Edifício Gooderham de Toronto, construído em 1892, e o English-American Building de Atlanta, em 1897, são outros exemplos proeminentes. (WIKIPEDIA)

2023-10-29

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Petrone 1955: A urbanização paulistana


PETRONE P, “A cidade de São Paulo no século XX”. Revista de História, [S. l.], v. 10, n. 21-22, p. 127-170, 1955.
https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/36445

São Paulo 1929
“(..) Quando se comparam as plantas da cidade de São Paulo referentes à última década do século XIX com as que correspondem às diversas etapas de sua vida no século atual, nota-se que São Paulo expandiu-se em tôdas as direções, mas que foi para Oeste, para Leste e para o Sul que tal expansão verificou-se com maior intensidade. Ora, exatamente em tais direções localizam-se áreas industriais as mais importantes e características da capital paulista.

Não resta dúvida que as principais áreas industriais acompanham as vias-férreas: Brás, Belenzinho, Tatuapé, Comendador Ermelindo e São Miguel Paulista, ao longo dos trilhos da "Central do Brasil"; ainda o Brás, Pari, Mooca, Ipiranga, São Caetano do Sul e Santo André, acompanhando a Santos-Jundiaí"; Barra Funda, Água Branca, Lapa e Osasco, servidas tanto por esta via-férrea, como pela "Sorocabana". Mas, inegàvelmente, foi a função industrial, mais do que outro qualquer fatôr, que ocasionou seu crescimento e sua expansão em área. O fato de terem as estradas de ferro aproveitado os vales, onde os terrenos podiam ser obtidos a baixos preços por não serem apreciados como locais de residência, atraiu a instalação de estabelecimentos fabrís . Cresceu, dêste modo, a área urbanizada e as várzeas do Tamanduateí e do Tietê, naqueles trechos, deixaram de ficar ao abandono.” (..)

Veja o mapa de S Paulo 1929 em detalhes pelo link https://upload.wikimedia.org/.../Mapa_de_S%C3%A3o_Paulo...

2023-10-25


quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Vitalidade dos grandes centros: o dilema


Financial Times 10-10-2023
https://www.ft.com/content/698f41af-0d88-424b-80b0-241be01dac35

O relativo esvaziamento dos escritórios centrais das grandes metrópoles segue sendo tema recorrente na imprensa de negócios 
do mundo norte-atlântico.

Embora a Covid e o trabalho remoto sejam os culpados preferenciais, a situação não seria tão aflitiva se a economia global estivesse numa trajetória de crescimento sustentado, ainda que “por baixo”. 

Transparece mais ou menos claramente nessas matérias já não digo a apreensão dos proprietários de imóveis comerciais com a desvalorização de suas torres, mas, principalmente, o temor de que essa desvalorização provoque efeitos em cadeia na economia, com consequências imprevisíveis.

Nós, urbanistas, costumamos lamentar a “perda de vitalidade” dos Centros de nossas grandes cidades. Mas eu me permito observar que, numa economia cada vez mais tendente à concentração da riqueza e ao trabalho precário, a manutenção disso chamamos de “vitalidade dos centros urbanos” supõe taxas de crescimento econômico que expandirão ainda mais as megalópoles e suas fabulosas deseconomias, aí incluídos os impactos sócio-ambientais que hoje constituem o problema crítico da civilização capitalista.


Pergunto-me todos os dias como escapar desse dilema.

2023-10-12

domingo, 15 de outubro de 2023

O mercado de rotas de fuga da Sagrada Família brasileira


Veja Abril 09-10-2023
"A legislação que abre a possibilidade de concessão de um visto de residência aos estrangeiros que investirem uma determinada quantia no país virou nos últimos tempos um dos caminhos mais curtos para a imigração de brasileiros à Europa. (..)

Bastante agressivo na aplicação dessa política, Portugal virou o destino óbvio de muitos brasileiros, pela proximidade cultural e o mesmo idioma (ou quase, vá lá…). Ocorre que o governo local deu um passo atrás nessa direção, descontinuando o chamado Golden Visa. Quase que imediatamente, muita gente disposta a pegar o primeiro avião para fugir do Brasil passou a avaliar outros destinos. (..) Do ponto de vista do aporte necessário para obter um Golden Visa, a Espanha está numa faixa intermediária, nem tão barata quanto a Grécia, nem tão cara quanto Malta. 

(..) Para se beneficiar do Golden Visa espanhol, que foi lançado em 2013 e se estende também aos familiares, é preciso fazer pelo menos 500 000 euros em investimentos imobiliários. Quem não quiser fazer esse aporte em tijolo ou terreno, tem a opção de transferir capital: 1 milhão de euros para Espanha ou investir esse mesmo valor em uma empresa local. (..)"

2023-10-18

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Apontamentos: Medeiros & Medeiros 2022 - o subúrbio de Lima Barreto


MEDEIROS, Juliane P. C. e MEDEIROS, Ana Elisabete de A. “Os subúrbios cariocas no olhar de Lima Barreto”, Thésis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 160-173, dez. 2022.
https://thesis.anparq.org.br/revista.../article/view/303/314

Montagem: Àbeiradourbanismo
Lima Barreto é, com toda certeza, uma valiosíssima testemunha da formação dos subúrbios do Rio de Janeiro e, provavelmente, dos subúrbios brasileiros em geral. Sua obra corresponde, muito precisamente, ao período apontado por mais de uma fonte - Queiroz Ribeiro para o Rio de Janeiro[1] e Strohaecker para Porto Alegre [2] - como sendo o da formação do mercado de terras periféricas às nossas capitais recém convertidas ao status de republicanas. Esse artigo é, portanto, absolutamente oportuno e relevante para leitores interessados na história urbana brasileira e, particularmente, na formação das metrópoles capitalistas em nosso país. Vale uma análise muito mais atenta e profunda do que trago nesses apontamentos. 

Apenas adianto aqui algumas observações, derivadas de meus estudos para o artigo "Porto Alegre cidade radiocêntrica (2)"[2a], de maio de 2o2o, acompanhadas de esclarecedoras citações da obra de Queiroz Ribeiro.
 
Não penso que a suburbanização em geral possa ser dita “política urbana”[3], tampouco que a suburbanização retratada na obra de Lima Barreto seja “resultado da estratégia de afastamento da classe proletária do centro urbano”[4], como foi o caso, por exemplo, da transferência de favelados da Zona Sul do Rio de Janeiro para conjuntos habitacionais periféricos nas décadas de 1960 e 1970.

Como nas demais capitais provinciais do Império brasileiro, a suburbanização do Rio de Janeiro tem início nas décadas de 1880-90 com o surgimento do mercado de terras periféricas à capital, e suas companhias loteadoras, ainda à margem de políticas e regulamentos urbanísticos e sujeitas somente às leis do próprio mercado. 

Importa destacar que este primeiro ciclo da suburbanização carioca não se baseia no assentamento de proletários, que não tinham crédito para adquirir lotes e casas nem recursos para arcar com deslocamentos diários ao centro urbano: 

(..) o desenvolvimento dos transportes coletivos por trens e bondes irá incorporar ao tecido urbano uma grande quantidade de terras, diminuindo fortemente o poder monopolista dos proprietários de cortiços, estalagens e casas-de-cômodos localizados na parte central da cidade. Num primeiro momento, porém, não há um deslocamento das camadas mais pobres para os subúrbios recém-urbanizados, em razão do elevado preço dos trens e bondes e da precariedade dos serviços. Para aquelas camadas sociais, o morar no centro é vital, pois seu sustento depende da “viração” diária e seu rendimento muito magro para cobrir os custos do deslocamento. (..) [QR p. 216]

Essa circunstância dará outro destino à maioria dos trabalhadores residentes nos cortiços e casas de cômodos das áreas centrais afetadas pelas grandes obras de modernização urbana da primeira década do século XX (Rua Mem de Sá,  Avenidas Central e Rodrigues Alves):       

A crise do sistema rentista de produção de moradias gera uma piora nas condições de vida das “classes pobres” da cidade. Deslocadas do centro, elas irão aumentar a densidade de ocupação das casas-de-cômodos nas zonas contíguas ao centro, especialmente na Gamboa, Sant’Anna, Santa Rita e São José. (..) [QR p. 217]

A proliferação de loteamentos suburbanos no Rio de Janeiro de Lima Barreto supunha, dentre outras coisas, a existência de uma camada social de adquirentes de imóveis com algum patrimônio e/ou capacidade de endividamento. Essa "demanda solvável" provinha dos estratos inferiores da nascente classe média, formados por pequenos comerciantes, barnabés, militares, artesãos e, em pequena medida, operários qualificados. [5] [6] 

O surgimento de "camadas médias" na cidade também terá um importante papel na expansão da zona suburbana da Central do Brasil  e da zona norte verificado nas últimas décadas do século XIX e nos primeiros anos deste século. [QR p. 230] 

Ainda que extraordinariamente matizado, o ambiente em que se desenrola a trama de Clara dos Anjos é regido por personagens ciosos de suas conquistas materiais e expectativas de ascensão em uma sociedade até há pouco marcada pelo contraste primordial entre senhores (proprietários de terras, de casas de comércio e seus prepostos) e trabalhadores escravizados. O primeiro dentre esses personagens é o próprio Joaquim dos Anjos, pai de Clara:

"(..) Toda sua ambição se cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. Conseguira, ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros, com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que merecera sucessivas promoções. Casara meses depois de nomeado; e, tendo morrido sua mãe, em Diamantina, como filho único, herdara-lhe a casa e umas poucas terras em Inhaí, uma freguesia daquela cidade mineira. Vendeu a modesta herança e tratou de adquirir aquela casita nos subúrbios em que ainda morava e era dele. O seu preço fora módico, mas, mesmo assim, o dinheiro da herança não chegara, e pagou o resto em prestações." (..)" [LB p. 1035 ]

Assim também os pais de Cassi: 

Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha, com o produto de uma herança que tocara à mulher, Manuel de Azevedo veio encontrar, aos treze anos, o filho completamente viciado (..)  [LB p.1062] 

Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a aprender um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana revoltou-se e esbravejou: — Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele é sobrinho de um doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços ao país.  [LB p. 1063]

E outros mais:

O armazém em que Marramaque era empregado havia de tudo: ferragens, roupas feitas, isto é, camisas, calças, ceroulas grosseiras, para trabalhadores; armas, louças etc. etc. Comprava diretamente nos atacadistas da Corte; além disso, o seu proprietário era intermediário entre os pequenos lavradores e as grandes casas da Capital do Império, isto é, comprava as mercadorias àqueles, por conta destas, com o que ganhava comissão. [LB p. 1065]

Num dos subúrbios, na proximidade da casa de Cassi, veio a residir um casal. A mulher era moça, fruída de carnes, alta, louçã, grandes olhos negros, um tipo do Sul, ao que parece do Rio Grande. O marido, que era oficial de Marinha, maquinista, era amorenado, tirando a mulato, baixo, sempre triste, curvado e pensativo. (..) Tomavam comida fora e só tinham uma rapariguita preta, de uns dezesseis anos, para os serviços leves da casa. [LB p. 1071]

Não me parece razoável, portanto, qualificar-se o subúrbio de Lima Barreto como “lugar de segregação da classe proletária”,[7] atributo que no início do século XX pertencia, principalmente, aos cortiços, casas de cômodos e favelas do nascente centro metropolitano. 

No subúrbio de Lima Barreto habitavam proletários, com certeza - e esta é uma relevante exceção à regra geral enunciada por Queiroz Ribeiro -, principalmente biscateiros e serviçais, geralmente mulheres, empregadas e agregadas às famílias da nova classe média suburbana, além de comerciários e uns poucos trabalhadores fabris. Vejamos um simples exemplo:

— Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um perverso, é sem-vergonha. Eu sei o nome das outras. Olhe: a Inês, aquela crioulinha que foi nossa copeira e criada por nós; a Luísa, que era empregada do doutor Camacho; a Santinha, que ajudava a mãe a costurar para fora e morava na rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava no “Joie de Vivre”… [LB p. 1048]

Contudo, as vívidas imagens com que Lima Barreto descreve os assentamentos mais afastados da ferrovia deixam claro que eram as franjas do subúrbio, tipicamente as encostas e grotas das elevações ao longo do "eixo da Central do Brasil", os lugares onde se reproduziam, em alguma medida, os processos de segregação proletária já materializados nos cortiços e casas de cômodos da região central, e que mais tarde iriam generalizar-se por toda a cidade em forma de favelas mais ou menos vizinhas aos bairros de classe média que são a fonte principal do seu sustento. 

A segregação proletária, já nessa época, era portanto a dos que não tinham acesso ao mercado de terras, todos "pretos ou quase pretos de tão pobres" [8], incluídos obviamente os trabalhadores recém-liberados do regime de escravidão. 

O subúrbio pequeno-burguês de Lima Barreto é, sem dúvida, bastante distinto dos bairros pequeno-burgueses de José de Alencar e Machado de Assis - Laranjeiras, Tijuca, Andaraí -, antigas "estações de repouso e prazer"[9] já incorporadas à cidade do terceiro quarto do século XIX. Mas a segregação social, neste caso, é um aspecto inerente à urbanização de mercado: a imensa maioria dos adquirentes de imóveis, vale dizer as famílias de classe média, busca morar o mais próximo possível dos que lhe parecem 'superiores' na hierarquia social e decididamente apartados dos 'inferiores'. 

É suficientemente clara, no relato de Lima Barreto, a acentuada redução da qualidade da habitação e da urbanização, consequentemente dos níveis de rendimento familiar, com o aumento da distância à linha férrea da Central (itálicos meus):

Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes, “correres” de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chamamos “avenida”.

As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam. [LB p. 1117]

Também significativa é a diferença social observada por Lima Barreto entre os bairros suburbanos de 1920 e a nascente periferia metropolitana:  

Nessas horas, as estações se enchem, e os trens descem cheios. Mais cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com o estado do Rio. Esses são os expressos. (..)

Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa. Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal, que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao estado, tudo falta, nem nada há embrionário. [LB p. 1120]

Pergunto-me a esta altura se a qualificação, por Medeiros & Medeiros, do subúrbio de Lima Barreto como "lugar de segregação proletária" não teria origem na passagem em que o autor, num arroubo de indignação em face da significativa distância social tantas vezes assinalada entre a "cidade" e o "subúrbio", bem como das péssimas condições de moradia e trabalho dos proletários em geral, atropela a complexa tessitura sócio-espacial do seu próprio romance e pontifica:

O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes deem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos. [LB 1119-20]

*

Assim como Clara dos Anjos começou a ser escrito em 1904, foi publicado como conto em 1920, transformado em romance em 1922, publicado postumamente em folhetim em 1923-24 e como livro em 1948, [10] também esta pesquisa, de correção em correção, de acréscimo em acréscimo, será um dia publicada neste blog sob o título "O Subúrbio de Lima Barreto", com uma análise bastante mais minuciosa de seus textos, enriquecida com maior quantidade de referências acadêmicas e acrescida de uma introdução, que julgo pertinente, sobre o uso de material literário como fonte de investigação urbanística.

2023-10-11

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REFERÊNCIAS 

BARRETO, Lima. Lima Barreto Completo I: Sátiras e Romances Completos. Edição do Kindle

MEDEIROS, Juliane P. C. e MEDEIROS, Ana Elisabete de A. “Os subúrbios cariocas no olhar de Lima Barreto”, Thésis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 160-173, dez. 2022.
https://thesis.anparq.org.br/revista.../article/view/303/314

QUEIROZ RIBEIRO L C, Dos Cortiços aos Condomínios Fechados - As formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro, p. 32. Observatório das Metrópoles, 2015
http://www.observatoriodasmetropoles.net/new/images/abook_file/dos_corticos_aos_condominios_fechados.pdf

NOTAS

[1] QUEIROZ RIBEIRO L C, Dos Cortiços aos Condomínios Fechados - As formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro, p. 32. Observatório das Metrópoles, 2015
http://www.observatoriodasmetropoles.net/new/images/abook_file/dos_corticos_aos_condominios_fechados.pdf

[2] STROHAECKER T M, “Atuação do Público e do Privado na Estruturação do Mercado de Terras de Porto Alegre (1890-1950)”. Scripta Nova - Revista Electrónica de Geografía Y Ciencias Sociales / Universidade de Barcelona, Vol. IX, núm. 194 (13), 1 de agosto de 2005.
http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-194-13.htm

[2a] JORGENSEN P, “Porto Alegre cidade radiocêntrica (2)”, À beira do urbanismo (blog), 21-05-2020.
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/05/porto-alegre-cidade-radiocentrica-2_30.html

[3] "Como política urbana, a suburbanização é um modo de alienar os trabalhadores da vida citadina, resumindo o cotidiano do proletariado a grandes deslocamentos casa-trabalho-casa, afastando-o da verve da capital e do sentido da vida urbana". MEDEIROS & MEDEIROS p. 165.

[4] "(..) os subúrbios cariocas são resultado da estratégia de afastamento da classe proletária do centro urbano." MEDEIROS & MEDEIROS p. 160 / Resumo.

[5] "A consideração dos operários qualificados como "camada média" justifica-se se atentarmos para o fato de que desde 1870 forma-se um grande contingente de "pobres" na cidade, pessoas que vivem de trabalhos temporários e intermitentes (..). QUEIROZ RIBEIRO p. 231.

[6] "(..) operários das Oficinas do Engenho de Dentro, nos quais se incluíam os cargos de operários, guardas, feitores, serventes e jornaleiros. Esses, correspondiam a quase totalidade dos empregados da oficinas, que submetidos a 4ª Divisão da companhia, somavam em 1907 cerca de 1.217 funcionários, ao passo que as categorias superiores de chefes, mestres e ajudantes de mestre somavam 22 empregados na mesma data". SERFATY E R C, Pelo trem dos subúrbios: disputas e solidariedades na ocupação do Engenho de Dentro (1870-1906). Dissertação de Mestrado, PUC Rio de Janeiro 2017, p. 75.
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/32190/32190.PDF

[7] "Para Fernandes, o conceito carioca de subúrbio representa um “rapto ideológico”, pois a corrupção do significado da palavra é um recurso da ideologia capitalista para legitimar a segregação da classe proletária. Assim, o sistema capitalista reinterpreta a noção de subúrbio para atender a sua ideologia: (..)" MEDEIROS & MEDEIROS p. 165.

[8] VELOSO C & GIL G, Haiti. 1993

[9] BARRETO, Lima. Lima Barreto Completo I: Sátiras e Romances Completos. Edição do Kindle p. 1038.

[10] NASCIMENTO A S et al, “Clara dos Anjos, de Lima Barreto: o conto e o romance”. Encontros de Vista, Recife, 21 (1): 106-119, jan./jun. 2018
https://www.journals.ufrpe.br/index.php/encontrosdevista/article/download/4743/482484409

domingo, 8 de outubro de 2023

Constantine, Argelia

 


Constantine (Arabic: قسنطينةromanized: Qusanṭīnah), also spelled Qacentina[4] or Kasantina, is the capital of Constantine Province in northeastern Algeria. During Roman times it was called Cirta and was renamed "Constantina" in honour of Emperor Constantine the Great. It was the capital of the French department of Constantine from 1848 until 1962. Located somewhat inland, Constantine is about 80 kilometres (50 miles) from the Mediterranean coast, on the banks of the Rhumel River.

Constantine is regarded as the capital of eastern Algeria and the commercial centre of its region and has a population of about 450,000 (938,475[5] with the agglomeration), making it the third largest city in the country after Algiers and Oran. There are several museums and historical sites located around the city. Constantine is often referred to as the "City of Bridges" because of the numerous picturesque bridges connecting the various hills, valleys, and ravines that the city is built on and around.

Constantine was named the Arab Capital of Culture in 2015.[6] 

2023-10-08

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Apontamentos: Alonso 1964 - marcos teóricos para projetos de renovação urbana


ALONSO W, “The Historic and the Structural Theories of Urban Form: Their Implications for Urban Renewal”. Land Economics Vol. 40, No.2 (May, 1964), pp. 227-231. University of Wisconsin Press.
https://docs.google.com/document/d/1-bHp274ABR8iKw3TvP4Et2Z6YOpjQbOq1ppaSC4mczk/edit?usp=sharing

Este não é, propriamente, um texto clássico, mas me parece de algum interesse tanto para a história da ciência /disciplina /estudos da organização espacial urbana quanto para a reflexão sobre a abrangência técnico-científica do urbanismo contemporâneo.

No mesmo ano (1964) da publicação de sua obra paradigmática Location and Land UseWillliam Alonso intervém no debate público sobre os planos de renovação (hoje diríamos gentrificação) de áreas centrais obsolescentes de Nova York alertando para os riscos da empreitada caso seus mentores se mantenham aferrados ao que chama de “teoria histórica” da ordem espacial urbana – baseada, segundo ele, nos “modelos” de Burgess (Círculos Concêntricos, 1925) e Hoyt (Setores de Círculo, 1937).

Em termos visivelmente diplomáticos, Alonso propõe que se leve também em conta os postulados da “teoria estrutural” da organização espacial urbana, vale dizer as leis do mercado de solo, àquela altura fortemente marcado pela preferência da ascendente classe média dos EUA pelas residências unifamiliares em amplos terrenos suburbanos.

Depois de observar a contradição entre a “convicção, própria dos planejadores, da necessidade de um plano geral” e o caráter espasmódico dos projetos de renovação urbana - “um atrás do outro sem qualquer visão de conjunto” -, Alonso afirma que a ausência da abordagem metropolitana impede que os defensores dos projetos de renovação urbana tenham uma visão clara da relação entre “os objetivos da comunidade e o entendimento de sua estrutura”.  

Em linguagem mais direta, Alonso conclui dizendo que os projetos de renovação urbana das áreas centrais “só dizem respeito a um setor muito restrito e especializado do mercado” e “correm o risco de fracassar completamente devido à incompreensão do funcionamento do sistema urbano e a uma interpretação equivocada da estrutura da demanda.”

Desconheço - ainda - as consequências desse debate, mas creio que Alonso tinha razão quanto à factibilidade dos projetos de renovação urbana das áreas centrais na escala pretendida.

O mesmo não diria de sua concepção de “teoria histórica” e “teoria estrutural” da ordem espacial urbana - tema para alguma reflexão e, com certeza, um futuro comentário. E é por isso que concluo afirmando: mesmo não sendo um clássico, este artigo é notável pelo seu valor bibliográfico e epistemológico. Para estudiosos das estruturas espaciais urbanas e, particularmente, da urbanização nos Estados Unidos de meados do século XX, Alonso discutindo Burgess e Hoyt não é assunto de pouca monta. 

2023-10-04

domingo, 1 de outubro de 2023

Encruzilhada portuguesa com certeza


El País 30-09-2023
https://elpais.com/economia/2023-09-30/los-portugueses-se-movilizan-por-todo-el-pais-contra-la-crisis-de-la-vivienda.html

"(..) El mismo día que Portugal se coronaba como mejor destino turístico de Europa, miles de portugueses salían a la calle para protestar contra los efectos perversos de ese éxito. La crisis de la vivienda en el país, que viene de lejos, se ha agudizado con las políticas públicas que han impulsado la expansión de pisos turísticos y la concesión de visados de oro a extranjeros por inversiones inmobiliarias. “Hola, ¿están disfrutando? Esto va con ustedes”, le decían en la tarde del sábado algunos manifestantes a los turistas que se asomaban a los balcones de Lisboa para ver la marcha.

La protesta ha sido multitudinaria en Lisboa, pero también ha tenido réplicas en una veintena de ciudades, incluidas Oporto y Faro, donde la dificultad para acceder a viviendas dignas a un precio asequible es casi tan grave como en la capital. El impacto más extremo de la crisis podía verse en una de las avenidas por las que discurrió la marcha, con varias tiendas de campaña instaladas bajo soportales ocupadas por gente que no tiene techo. (..)"

2023-10-01

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Apontamentos: Haig 1926 - a hipótese do mínimo custo de atrito


HAIG R M, “Toward an Understanding of the Metropolis”. Quarterly Journal of Economics, Vol. 40 No. 3 (May, 1926), pp. 402-434, Oxford University Press
https://www.jstor.org/stable/1885172

Montagem: Àbeiradourbanismo
Este paper é um clássico da economia urbana, de enorme valor também para geógrafos e urbanistas. Publicado em 1926, ele é citado em nove de cada dez artigos sobre o desenvolvimento histórico dessa área do conhecimento como um dos pioneiros do estudo da relação entre a renda da terra e a organização do espaço urbano.

O que geralmente não se diz é que Haig, economista especializado em finanças públicas e política fiscal, analisa essa relação desde o ponto de vista do planejamento urbano, no contexto da política de descentralização urbana subjacente ao Plano Regional de Nova York e Arredores:

The interests at stake in decentralizing cities are sufficiently great to justify considerable effort to learn where, in a soundly-conceived economic plan, things "belong." The committee on the Regional Plan of New York decided to attack the problem in a realistic manner by making a series of studies of trends and tendencies in the location of the chief economic activities in the area.

Seu postulado da renda do solo urbano como “ônus que o proprietário de um terreno relativamente acessível pode impor [ao usuário] devido à economia de custos de transporte que a localização possibilita", obviamente baseada no modelo agrícola de Von Thunen, é o começo de uma elaboração teórica, jamais desenvolvida, derivada de sua minuciosa análise das mudanças ocorridas na composição do complexo de negócios do Centro da cidade de Nova York, incluindo um bom número de indústrias, entre os anos de 1900 e 1922.

E o mais interessante, por abordar a renda da terra desde o ponto de vista do planejamento urbano, isto é, da cidade por oposição aos agentes individuais, sua teoria do “custo de atrito” (aluguel + transporte) é a base de uma hipótese sobre a estrutura da cidade moderna que provém de um princípio de economia social derivado das escolhas das firmas e famílias: a ordem espacial urbana tende a ser determinada pela minimização dos custos de atrito: 

Of two cities, otherwise alike, the better planned, from the economic point of view, is the one in which the costs of friction are less. This will mean that the aggregate site rents are less or that the transportation system is superior - or both. It may be suggested as an hypothesis that the layout of a metropolis - the assignment of activities to areas - tends to be determined by a principle which may be termed the minimizing of the costs of friction.

Na interpretação de Richardson H W (1969):

Assim, em condições de concorrência e com perfeito conhecimento, o mercado da terra urbana, ao que se supõe, opera de modo que o valor agregado dos aluguéis dos terrenos existentes e dos custos de transporte para a cidade com um todo, são mínimos.

O link abaixo dá acesso a um extrato, ainda por traduzir, contendo as passagens que me parecem mais representativas desse esboço teórico. 

2023-09-27