Por analogia, é como se disséssemos que a história das cidades novas em nosso país se resume à construção de cidades-capitais - Teresina (1852), Aracaju (1855), Belo Horizonte (1897), Goiânia (1933), Brasília (1960) -, por iniciativa exclusivamente estatal.
Em ambos os casos, fica a pergunta: e o Noroeste paranaense?
Não é meu propósito enveredar pela história do planejamento regional: a do urbanismo já me apresenta dificuldade suficiente. Ocorre, porém, que o fio da meada das cidades novas do noroeste paranaense nos conduz à política provincial de ocupação da região iniciada em fins do século XIX e, muito especialmente, ao Plano de Colonização da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP 1925) - subsidiária brasileira da colonizadora britânica Paraná Plantations -, depois Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP 1944) [1], em cujo âmbito foram criadas nessa parte do país, entre os anos 1929 e 1960, uma bem-sucedida economia agrícola fundada na pequena propriedade e uma densa rede de 111 pequenas e médias cidades, duas delas (Londrina e Maringá) hoje com características de “pequena metrópole”.
Não por acaso, esse vasto processo de ocupação e assentamento planejados é tema permanente de estudo por parte de uma importante rede de pesquisadores, urbanistas e geógrafos principalmente, oriundos em sua maioria das Universidades de Londrina e Maringá, cujos produtos constituem em si mesmos uma consistente refutação da origem desenvolvimentista do planejamento regional em nosso país.
Um desses produtos, que aqui introduzo, é o artigo “A integração cidade-campo como esquema de colonização e criação de cidades novas: do Norte Paranaense à Amazônia Legal” (2015), de autoria do professor Renato Leão Rego, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Maringá [2].
Partindo de uma sugestão do geógrafo norte-americano Martin Katzman [3], Rego propõe o Plano de Colonização da CTNP, de inícios da década de 1940, como referência para os projetos de ocupação da Amazônia e de colonização da Gleba Celeste, no norte do Mato Grosso, ambos da década de 1970, o primeiro por iniciativa direta do INCRA, o segundo a cargo da Colonizadora SINOP (Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná).
Quero crer que , desse modo, embora não reivindique o Plano de Colonização da CTNP como “marco zero” do planejamento regional brasileiro, Rego ao menos implicitamente o coloca como um referente primordial.
Será, nesse caso, o olhar do geógrafo, ou do urbanista-historiador, mais abrangente e perspicaz que o do economista?
O leitor interessado na história do urbanismo brasileiro encontrará na contribuição de Rego um relevante trabalho de recuperação das propostas e desenhos do arquiteto José Camargo, ligado desde 1955 ao antigo Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC) – órgão público federal antecessor do INCRA -, para a “ocupação planejada da bacia amazônica” (Urbanismo Rural). Verá, também, um conjunto de indicações para o projeto da Gleba Celeste, proposto pela Colonizadora SINOP a partir de projeto elaborado pelo engenheiro civil Roberto Brandão, egresso da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Paraná, em 1954.
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Abstenho-me de comentá-los para me deter um momento no meu tema - a proposição central do artigo, apresentada no Resumo:
Ao analisar o Urbanismo Rural, este trabalho mostra que os elementos comuns entre o projeto do INCRA e o esquema da colonização norte-paranaense são precisamente aqueles derivados do ideário garden city. Notando a adaptação ao empreendimento privado de colonização e à política governamental, este trabalho constata como a ideia original de Ebenezer Howard contribuiu para a ocupação planejada do interior do país. [meus destaques]
Na primeira postagem da série “As Sete Vidas da Cidade Jardim”, em construção neste blog, [4] defendi a proposição do professor Renato Rego de que o desenho urbano de Maringá foi influenciado não pela cidade-jardim howardiana, mas pela sua variante parker-unwiniana, nascida, com indiquei mais tarde, das exigências da indústria da suburbanização na Inglaterra de fins do século XIX e por isso esvaziada de sua abrangência regional e seu conteúdo socialmente reformador. Desde então, formei a opinião de que a o programa de Howard é muito mais claramente um pioneiro do regional planning do que do urban design.
Explico.
Embora enriquecido com conceitos e esquemas de desenho urbano que lhe renderam fama duradoura e prestígio mundial, o construto de Howard é essencialmente uma resposta programática à irrefreável migração de trabalhadores do campo para as grandes cidades inglesas. Seu propósito é a ocupação do espaço rural do país por uma rede de pequenas e médias cidades limitadas em população e densidade, funcionalmente autossuficientes e ambientalmente atrativas para o migrante rural, separadas entre si por cinturões agrícolas (green belts), interconectadas por ferrovias e, muito importante, autogeridas e financiadas pela valorização do solo. Essa rede de cidades foi por ele mesmo batizada “social city” na edição de 1898 de seu livro To-morrow: a Peaceful Path to Real Reform - uma dimensão crítica do programa da cidade-jardim quase sempre omitida por seus adeptos. Por essa razão, Howard é por muitos considerado, creio que com certa justiça, o precursor do ambicioso programa de cidades novas britânicas do pós-II Guerra Mundial - não mais destinado a atrair levas migratórias rurais em busca das áreas centrais das grandes cidades, mas a absorver excedentes de população urbana demandantes dos subúrbios em acelerada expansão.
Concluí, nessa ocasião, que as perguntas mais idôneas a propósito da influência de Howard no noroeste paranaense não dizem respeito ao desenho urbano de suas cidades, mas a se (1) o Plano de Colonização da CTNP tem raízes na tradição britânica do planning, (2) em que aspectos estaria materializada essa influência e, finalmente, (3) se ele guarda alguma relação com a social city howardiana.
O artigo de Rego aqui apresentado responde, enfaticamente, sim ao terceiro quesito, passando ao largo do primeiro e resolvendo o segundo, a meu ver, com base em elementos circunstanciais e analogias conceituais.[5]
Será de fato o Plano de Colonização da CTNP, de 1939, uma “adaptação do ideário da garden city”? Será válido dizer, que “propagando-se, o diagrama de Howard permitiu a conformação urbana do norte do Paraná” e que, “nos anos 1940, esse esquema inicial [howardiano] de cidade social foi adaptado à nova situação do empreendimento norte-paranaense e ao contexto nacional contemporâneo”? Será razoável afirmar que “enquanto o esquema de cidade social viu nascer uma dezena de cidades novas planejadas no norte do Paraná, o esquema de cidades satélites, impulsionado pela cultura cafeeira, deu margem a quase uma centena de novos núcleos urbanos”? [meus destaques] [6].
Não estaria o professor Leão Rego transportando do plano do desenho urbano para o do planejamento regional, à maneira de Hall [7], o poder demiúrgico de Ebenezer Howard de moldar o desenvolvimento futuro dos assentamentos urbanos ocidentais? [8]
Inquestionavelmente, as concepções de organização espacial e urbanismo de Camargo para a Amazônia dos anos 1970 são um capítulo obrigatório da história do planejamento urbano e regional no Brasil e sua árvore genealógica matéria de relevante interesse teórico. Esta é, por si só, um notável qualidade da contribuição de Rego. Nessa investigação, a influência howardiana é uma hipótese de trabalho perfeitamente válida.
São patentes as conexões do Urbanismo Rural de Camargo com as tradições do saber urbanístico moderno - a rede urbana hierarquizada de Howard, o regionalismo de Geddes, o urbanismo ambiental de Radburn, o racional-funcionalismo da Carta de Atenas. O plano de ocupação da Gleba Celeste promovido pela SINOP, por sua vez, remete claramente às diretrizes do Plano de Colonização da CTNP, baseado no fracionamento da gleba em pequenas propriedades rurais dispostas entre as águas dos fundos de vale e as estradas vicinais nos espigões, cabendo à ferrovia, instalada na linha de cumeada, conectar entre si os núcleos urbanos e escoar a produção.
Juntar tudo isso numa "matriz howardiana" é que não me parece tarefa das mais simples. Por quê?
Porque julgo problemático estabelecer-se tal conexão sem uma apreciação rigorosa das imensas diferenças de contexto histórico, de conteúdo programático e, principalmente, de objetivos e expectativas dos agentes promotores dos respectivos empreendimentos, aos quais estão inapelavelmente vinculados os autores dos projetos.
A remissão a um modelo especulativo de um passado a essa altura remoto é um procedimento de projeto muito mais provável, e inteligível, em um programa estatal de forte viés político-administrativo, sob a égide do regime militar-burocrático de 1964-85, do que em um empreendimento privado regulado pela expectativa de retorno econômico a médio prazo – por mais ilustrado e presciente que seja o empreendedor.
No que tange ao Plano de Colonização da CTNP, não vejo como indício suficiente de sua gênese howardiana o fato de que
“o esquema de colonização pode ser verificado nos poucos planos remanescentes, na proposta do traçado da ferrovia e nos projetos urbanos elaborados por engenheiros e agrimensores – a maioria imigrantes –, mas submetidos à aprovação do escritório londrino da empresa”. (REGO, pág. 95)
E me pergunto: como poderia um modelo de descentralização urbana, com fama de utópico, para o país mais industrializado do mundo de fins do século XIX, tornar-se, 40 anos depois, sem deixar disso qualquer rastro documental, a matriz de um projeto privado de colonização rural num país sul-americano ainda escassamente urbanizado e mal desperto para o processo de industrialização?
Embora não tenha meios de demonstrar o contrário, tampouco previsão de tornar ao assunto a curto prazo, devo admitir que encaro com ceticismo a proposição central de Rego. Primeiro, pela falta de registros documentais da conexão entre a social city howardiana e o Plano de Colonização da CTNP. Segundo, porque em várias contribuições sobre o tema, incluindo este mesmo artigo, abundam exemplos de diferenças entre o Plano de Colonização e o programa howardiano - quanto ao crescimento limitado das cidades, quanto ao design, quanto à base industrial, quanto à existência e função dos green belts e quanto à destinação - rigorosamente oposta - da renda do solo: ao passo que o modelo howardiano propõe recuperar todo o excedente da cobertura de custos de construção e financiamento para a gestão, manutenção e melhorias das cidades-jardim, o esquema da CTNP tem como finalidade precípua a apropriação da totalidade da mais-valia fundiária rural e urbana como lucro privado. Terceiro, porque eu apostaria muito mais fichas nos vínculos do Plano da CTNP com as experiências britânicas de expansão da fronteira agrícola em suas coloniais asiáticas e africanas do que com uma especulação espacial temporã voltada à descentralização urbana da Grã-Bretanha.
A propósito desse último aspecto, a melhor pista nos é fornecida pelo próprio Rego em seu livro de 2009 As cidades plantadas: os britânicos e a construção da paisagem do norte do Paraná. Simon Fraser, 14o. Lorde Lovat, sócio principal da colonizadora britânica Parana Plantations, era também, nessa mesma época, proprietário promotor do empreendimento algodoeiro sudanês conhecido como Projeto Gezira, baseado no arrendamento de uma grande área de concessão estatal na bacia do Nilo a pequenos e médios lavradores. Não por acaso, seus planos iniciais para o nororeste paranaense tinham a ver com a cultura do algodão, não do café. [9] [10]
A social city howardiana é, em sua concepção, um modelo para a reestruturação do espaço nacional inglês sobre a base da urbanização e da indústria, impraticável senão pela iniciativa do Estado central a despeito das simpatias cooperativistas de seu criador, ao passo que a colonização do noroeste paranaense nasceu como empreendimento privado rural de alcance regional apoiado por uma rede de núcleos urbanos - sendo esta a razão da ausência de autênticos green belts -, ainda que a relação campo-cidade possa ter se invertido com o passar dos anos, mais ou menos inexoravelmente como pareça ao observador de hoje.
De todo modo, ressalvados a necessidade de uma crítica retrospectiva do plano da CTNP segundo um viés histórico-ambiental e as limitações inerentes ao planejamento urbano e regional em âmbito privado, estou totalmente de acordo com Rego em que “a estratégia de ocupação planejada do norte paranaense foi prontamente reconhecida pelos seus modos modernos de colonização” e que, do ponto de vista técnico, (..) ela é “uma bem-sucedida experiência de colonização e planejamento regional coordenados”.
Temos aqui, talvez, o primeiro e único caso brasileiro de construção deliberada de uma rede de cidades, iniciada, por necessidade do plano de negócios, como estrutura linear: entre 1929 e 1947 foram fundados, ao longo de uma mesma estrada de ferro e em uma sequência temporal quase perfeita, os núcleos urbanos de Londrina, Cambé, Rolândia, Arapongas, Apucarana, Jandaia do Sul, Mandaguari, Sarandi e Maringá.
Ouso dizer, a despeito de minha ignorância da matéria, que todas as demais redes de cidades estudadas na geografia brasileira são produto “natural” de ciclos econômicos bem determinados. Ocorrem-me a rede urbana do ciclo do ouro mineiro no século XVIII, as cidades cafeeiras do Vale do Paraíba no século XIX, a rede de centros agro-industriais do interior paulista no século XX e a rede urbana do agronegócio de grande escala do Centro-Oeste no Brasil na virada do século XXI.
Sou tentado a concluir que o Planejamento Regional brasileiro começou no Noroeste paranaense e, para bem ou para mal, por iniciativa estrangeira e mediante a concessão de um considerável pedaço do território nacional a um mega-empreendimento urbano-rural privado.
Eventuais analogias com certa classe de Grandes Projetos Urbanos contemporâneos talvez não sejam fortuitas, mas manifestação da recorrência, em condições sempre renovadas, dos grandes ciclos econômicos.
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NOTAS
[1] Por intermédio da CTNP, sua subsidiária brasileira, a empresa britânica Parana Plantations adquiriu diretamente do governo do Paraná 415.000 alqueires em outubro de 1925, ao preço de 8.712 contos de réis; entre 1925 e 1927 comprou 90 mil alqueires de fazendeiros e empresas de capital menor, somando cerca de 515 mil alqueires de terra roxa, em terreno praticamente plano, situadas entre os rios Paranapanema, Tibagi e Ivaí. No início da década de 1950, a CMNP adquiriu também a Gleba Umuarama situada a oeste da gleba inicial, com 30 mil alqueires. (NUNES 2017 [11])
[2] REGO R L, “A
integração cidade-campo como esquema de colonização e criação de cidades novas:
do Norte Paranaense à Amazônia Legal”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos
e Regionais V.17, N.1, p.89-103, Abr 2015.
[3] KATZMAN, M. T., Cities and frontiers in Brazil: regional
dimensions of economic development. Cambridge: Harvard University Press, 1977.
[4] JORGENSEN P, "As sete vidas da cidade-jardim". À beira do urbanismo (blog), 03-08-2017
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2017/08/a-sete-vidas-da-cidade-jardim.html
[5] “Ainda que a Companhia de Terras e a Parana Plantations pouco ou nada divulgassem de seu plano de colonização no tocante ao aspecto da urbanização da região, a sua prática parece atestar a afinidade com as ideias britânicas do town planning.” REGO, R L, As cidades plantadas : os britânicos e a construção da paisagem do norte do Paraná. Maringá : Edições Humanidades, 2009. https://www.passeidireto.com/arquivo/26626459/as-cidades-plantadas-os-britanicos-e-a-construcao-da-paisagem-do-norte-do-parana
[6] Seção “Howard nos Trópicos: o esquema de colonização norte-paranaense”
[7] HALL P, Cities of Tomorrow [1988], edição atualizada Blackwell,
Londres 1996, Capítulo 1: "Cidades da Imaginação”
[8] Demiurgo. Rubrica: filosofia. Segundo o filósofo grego Platão (428-348 a.C.), o artesão divino ou o princípio organizador do universo que, sem criar de fato a realidade, modela e organiza a matéria caótica preexistente através da imitação de modelos eternos e perfeitos (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Tornarei ao tema no quarto artigo da série "As sete vidas da cidade-jardim", dedicado à suburbanização das grandes cidades norte-atlânticas de fins do século XIX e sua relação com a cidade-jardim howardiana.
[9] REGO R L, “A integração cidade-campo como esquema de colonização e criação de cidades novas: do Norte Paranaense à Amazônia Legal”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais V.17, N.1, p.89-103, Abr 2015.
[10] NUNES Layane, “Os investimentos na colonização do norte do
Paraná direcionados pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, e a
comercialização das terras”, II Congresso Internacional de Política Social e Serviço
Social: desafios contemporâneos, Julho de 2017, Londrina PR.
[11] NUNES, Layane (UEM), "A Companhia de Terras Norte do Paraná e a não obediência ao seu plano geral de colonização”. Anais do III SUUB, Recife Set 2017, pp 214-230.
2019-11-01