quarta-feira, 28 de maio de 2025

Alquiler rotatorio es el nombre del negocio



BBC News Brasil 20-05-2025
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c89ppp1zlgqo

A Espanha solicitou a remoção de quase 66 mil imóveis da plataforma Airbnb por descumprirem as normas para hospedagem turística. A medida ocorre em meio ao aumento dos protestos contra o turismo em excesso, às vésperas da alta temporada. No domingo (18/5), manifestações nas Ilhas Canárias reuniram milhares de pessoas. O ministro dos Direitos Sociais, Defesa do Consumidor e Agenda 2030, Pablo Bustinduy, afirmou que os imóveis em questão "violaram diversas normas relacionadas à habitação de uso turístico". 


O anúncio veio após uma decisão judicial em Madri que determinou a retirada imediata de 4.984 imóveis do Airbnb citados pelo ministério. As propriedades estão localizadas em seis regiões: Madri, Andaluzia, Catalunha, Comunidade Valenciana, País Basco e Ilhas Baleares.(..)

2025-05-28

domingo, 25 de maio de 2025

Aluguel rotativo é o nome do negócio


Diário do Rio 19-05-2025
https://diariodorio.com/studios-e-unidades-de-ate-50-m%C2%B2-puxam-alta-no-mercado-imobiliario-do-rio/

A preferência dos cariocas por imóveis menores vem deixando de ser uma tendência para se consolidar como realidade no mercado imobiliário. Segundo o Secovi Rio, o Estado registrou o lançamento de 1.667 studios no último período. E o movimento não é pontual. Nos anos anteriores, houve um crescimento de 35% nos lançamentos de apartamentos compactos, enquanto os imóveis com quatro quartos despencaram quase 40%. (..) 
De acordo com a Ademi-RJ, cerca de 80% das unidades com até 50 metros quadrados são vendidas ainda na planta — muitas vezes, como opção de investimento para locação. (..)

2025-05-24

domingo, 18 de maio de 2025

Péssima notícia, como de costume


Diário do Rio 15-05-25
https://diariodorio.com/construtora-mineira-e-responsavel-pelo-projeto-que-pode-destruir-area-verde-do-centro-do-rio-com-espigao-de-22-andares/

O Centro do Rio segue à beira de perder um dos poucos e mais importantes espaços verdes da região e ganhar um ‘paredão’ que vai ser visto desde o Morro de Santo Antônio. A possível e polêmica construção de um espigão de 22 andares e 720 apartamentos no Buraco do Lume — área localizada na Praça Mário Lago que representa quase 50% de seu tamanho total — tem sido acompanhada de perto pelo DIÁRIO DO RIO. (..) O projeto, orquestrado pela construtora mineira Patrimar, anda gerando uma onda de opiniões contrárias de urbanistas, arquitetos e também do empresariado do Centro. Obtivemos acesso exclusivo à documentação do processo de licenciamento do futuro espigão perante a Prefeitura, revelando falhas e ocultações consideradas suspeitas que envolveriam o projeto. (..)

2025-05-18

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Excelente notícia, para variar


Diário do Rio 12-05-2025
https://diariodorio.com/terraco-com-vista-jardins-suspensos-paineis-de-portinari-o-que-encontrar-no-palacio-capanema-que-sera-reaberto-como-centro-cultural/

(..) O projeto de revitalização prevê que 60% do prédio seja dedicado a atividades culturais e os outros 40% à parte administrativa. A Fundação Nacional de Artes (Funarte) anunciou planos de transferir cerca de 300 funcionários para três andares do edifício — eles atuavam na antiga sede do órgão na Cidade Nova. O prédio também passa a abrigar áreas da Biblioteca Nacional, do Iphan, do Ibram e da Cátedra Unesco da Casa Rui Barbosa, entre outros órgãos culturais.

Apesar de não ser inteiramente aberto à visitação, boa parte do edifício está acessível ao público, incluindo salas de exposição, áreas comuns e até o espaço reservado à ministra da Cultura, Margareth Menezes, que defende o prédio como um motor da economia cultural do Rio. A ideia, segundo o Iphan, é que as pessoas se apropriem do Capanema, compreendam sua importância histórica e façam dele um espaço vivo. (..)


2025-05-14

Leia neste blog
‘MEC, marco cívico no.1 do Rio de Janeiro”, 18-05-2022
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2022/05/capanema-joia-da-coroa.html

domingo, 4 de maio de 2025

MCMV, AirBnb, renda imobiliária

 UOL JC PE 16-04-2025

https://jc.uol.com.br/colunas/metro-quadrado/2025/04/16/nova-faixa-do-minha-casa-minha-vida-apartamentos-de-rs-500-mil-e-juros-de-10-ao-ano-veja-vantagens.html


Eu não esperava ter atirado tão perto da mosca ao escrever, há algumas semanas, a postagem abaixo reproduzida. 

Só não sei dizer se as noticias que se vinham publicando sobre a crise da produção habitacional para a classe média faziam parte de uma campanha de pressão dos incorporadores para elevar o patamar de rendimento familiar do Minha Casa Minha Vida ou uma antecipação do que já vinha sendo discutido ou negociado com gente do governo.

Fato é que a criação do novo patamar de rendimentos do MCMV veio para servir à faixa do mercado habitacional que os incorporadores deixaram de lado para se ocupar do negócio muito mais rendoso da construção para aluguel rotativo - AirBnb, tipicamente - nos centros e subcentros de negócios, turismo, cultura, entretenimento 
e vida noturna das grandes metrópoles brasileiras.

Resta saber se a faixa de mercado deixada de lado - que, como mostra o gráfico abaixo, é a de renda imobiliária* mínima - será totalmente ocupada pelas empresas especializadas na incorporação para o MCMV ou "rachada" com os incorporadores de habitações rotativas trazidos de volta pelo aumento da renda imobiliária proporcionada pelo subsídio aos juros para famílias com rendimentos até R$ 12.000,00.

Clique na imagem para ampliar

Para uma explicação do gráfico acesse, neste mesmo blog, a postagem “Preço, custo, lucro e renda do solo: habitação de mercado x Minha Casa Minha Vida - um esboço de interpretação”, 28-12-2019

 *

"A renda da terra é a alma do negócio", À beira do urbanismo 19-01-2025

"As publicações do mercado imobiliário brasileiro vêm dizendo há algum tempo que a incorporação não está construindo para a ‘classe média’.

Alegam os juros altos. É certo. Mas não menos certo é que


a) uns estão permanentemente ocupados em construir para o ‘alto padrão’, onde o número de unidades por empreendimento é pequeno, o custo de construção relativamente alto, mas a fração ideal caríssima e a rentabilidade garantida por uma demanda imune às taxas de juros e crises econômicas;

b) outros em construir para o Minha Casa Minha Vida, onde a fração ideal é barata, mas multiplicada por centenas de unidades com custo de construção relativamente baixo, juro subsidiado e demanda garantida, pré-aprovada pelo próprio Estado; 

c) e os que construíam para a classe média descobriram a mina de ouro da moradia rotativa pericentral aos velhos e novos núcleos de negócios, que, como bem observa a própria matéria, apesar do tamanho (<30m2) tem o metro quadrado privativo mais caro da cidade - portanto também uma enorme rentabilidade em frações ideais, vale dizer em solo-localização, que é a alma do negócio da incorporação. 

Desconfio que a classe média que demanda moradia permanente terá de esperar o esgotamento do filão."

2025-05-04

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* O termo "renda imobiliária" se refere à parte do lucro da incorporação que provém da venda das frações ideais de terreno, cf :

[1] “(..) el presente trabajo se centra en el concepto de capital inmobiliario (capital incorporador) como relación social que, de manera orgânica, articula Estado, constructoras, financieras, etc., para la apropiación de las rentas de la tierra bajo la forma de ganancias; esto es, el proceso de valorización inmobiliaria proveniente del movimiento del capital que invierte en la ampliación de las rentas de la tierra” [SMOLKA M, “Precio de la tierra y valorización inmobiliaria urbana: esbozo para una conceptualización del problema”. Revista Interamericana de Planificación Vol XV, No 60, Dez 1981]
https://drive.google.com/file/d/103newtDPbcUSTym3rnoIlt3WJ6CmYazH/view?usp=sharing

[2] “Artigo 29 - Considera-se incorporador a pessoa jurídica ou física, comerciante ou não, que, embora não efetuando a construção, compromissa e efetiva a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob o regime condominial (..)” (Lei 4.591 de 16 de dezembro de 1964). (QUEIROZ RIBEIRO, Luiz Cesar, Dos Cortiços aos Condomínios Fechados - As formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015
https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/07/Livro-Dos-Corti%C3%A7os-aos-Condom%C3%ADnos-Fechados_2edicao.pdf

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Meia verdade

O problema não é se o senhorio é a 'família real' ou qualquer outra. 

Tampouco, não custa lembrar, que o laudêmio encareça o imóvel, uma vez que as ofertas de preço já o incluem - como incluem os impostos sobre a propriedade, as 'custas cartoriais' e eventuais despesas de corretagem a cargo do comprador.

Problema é o fato do proprietário e sua linhagem terem direito perpétuo a uma renda - o laudêmio - incidente sobre boa parte do solo do que veio a se tornar o centro urbano de  Petrópolis.

É a sujeição da cidade republicana a um instituto jurídico imperial - proveniente de relíquias aristocráticas conhecidas dos historiadores do Direito [1] - que drena para arcas privadas herdeiras da Casa de Bragança parte significativa da receita potencial do imposto municipal sobre a transmissão de bens imóveis (ITBI). 

Um caso indiscutível de 'função antissocial da propriedade'.

Na referida entrada "Enfiteuse" da Wikipedia nos deparamos com outra faceta da conservação desse privilégio: 

O renomado jurista Pontes de Miranda [1892-1979], referindo-se ao Código Civil de 1916, criticava a manutenção da enfiteuse na legislação brasileira:

"O Código Civil conserva a enfiteuse, que é um dos cânceres da economia nacional, fruto, em grande parte, de falsos títulos que, amparados pelos governos dóceis a exigências de poderosos, conseguiram incrustar-se nos registros de imóveis." [11]

2025-04-31

Leia também, neste blog
“PEC das Praias: O capital no século XXI”. À beira do urbanismo (blog) 19-06-2024, por Pedro Jorgensen
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2024/06/pec-das-praias-o-capital-no-seculo-xxi.html

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[1] WIKIPEDIA: “Enfiteuse” 14-05-2024
https://pt.wikipedia.org/wiki/Enfiteuse

domingo, 27 de abril de 2025

Cá entre nós ...


The Conversation 16-4-2025
https://theconversation.com/os-sinais-de-greenwashing-nos-preparativos-urbanos-de-belem-para-sediar-a-cop-30-254168

(..) Há quase dois anos, o plenário da COP 28 decidiu que em 2025 a cidade-sede da Conferência do Clima seria Belém. A capital do Pará enfrenta problemas que geram e agravam a latente injustiça socioespacial e climática da cidade: na coleta e tratamento de resíduos, saneamento básico, mobilidade, segregação urbana, baixo índice de arborização, entre outros. Com seus 1.303.403 habitantes, Belém exibe desigualdade em cada esquina, e mais da metade da população reside em favelas ou comunidades urbanas, de acordo com os dados do Censo. A metrópole, que tem o título de “cidade das mangueiras”, tem um baixíssimo índice de arborização e uma temperatura que aumentou quase 2 graus centígrados nos últimos 50 anos. E isso em plena Floresta Amazônica. (..)
Considerando os resultados das COPs 01-29, a  COP 30 não seria, ela mesma, uma operação de greenwashing?

2025-04-27

terça-feira, 22 de abril de 2025

Cidade feudal, cidade mercantilista, cidade capitalista: notas

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Última edição 03-06-2025 

A literatura dedicada à história da arte, da arquitetura e do urbanismo atribui, com bons motivos, uma enorme importância aos períodos classificados como renascentista e barroco, este último geralmente associado ao auge das monarquias absolutistas europeias.

Em se tratando de história urbana, porém, para a qual a arte, a arquitetura e o urbanismo aparecem, regra geral, como exteriorizações das conquistas culturais e materiais da parcela mais bem aquinhoada da sociedade, precisamos partir de uma periodização baseada na relação entre o processo de urbanização e o modo de produção e distribuição da riqueza em geral e, muito especialmente, dos bens e serviços urbanos.
 
Tomando em conta os ciclos geralmente reconhecidos pela literatura econômica, a cidade desse período de mais ou menos três séculos haveria de ser classificada como ‘mercantilista’. É o caso da urbe colonial latino-americana, nascida da revolução do comércio mundial associada às grandes navegações do século XVI. E não poderia ser diferente, uma vez que inexistiu nesse âmbito a cidade feudal - as cidades pré-colombianas e seus regimes sociais foram ambos destruídos pelos colonizadores espanhóis - e o capitalismo europeu era, se tanto, um embrião.

Cabe, no entanto, perguntar: não sendo um modo de produção, pode o mercantilismo ter gerado determinantes da estrutura urbana distintos daqueles dos modos de produção feudal-senhorial e capitalista? 

Mumford: um esforço de interpretação
Na abertura da seção 2 do capítulo XII - “El nuevo complejo urbano” de sua obra magna La Ciudad en la Historia, Mumford parece responder a essa questão, categoricamente, que sim!

“Entre los siglos XV y XVIII se configuró en Europa un nuevo complejo de rasgos culturales. En consecuencia, tanto la forma como el contenido de la vida urbana quedaron radicalmente alterados. El nuevo modelo de existencia surgió de una nueva economía, la del capitalismo mercantilista; de un nuevo marco político, principalmente el de una oligarquía o un despotismo centralizado, que se concretaba por lo común en un Estado-nación; y de una nueva forma ideológica, que procedía de la física mecanicista, cuyos postulados subyacentes habían sido formulados, mucho antes, en el ejército y el monasterio.” [1] [destaque meu]

Contudo, é o próprio Mumford quem nos adverte, na abertura deste mesmo capítulo 12, “La estructura del poder barroco”, para o fato de que 

“Las culturas humanas no mueren en un momento dado como si fueran organismos biológicos. Aunque a menudo parecen formar un conjunto unificado, es posible que sus partes hayan tenido una existencia independiente antes de integrarse en el conjunto y, por la misma razón, tal vez aún sean capaces de seguir existiendo cuando ya ha dejado de funcionar la totalidad en que otrora prosperaron. Tal es lo que ocurrió con la ciudad medieval. Los hábitos y las formas de vida medieval seguían activos tres siglos después de su «cierre», si se considera que el siglo XVI fue ese punto decisivo. (..) Incluso en el Nuevo Mundo las más antiguas leyes medievales del mercado permanecieron en vigor en las ciudades durante el siglo XVIII. [2]  

E conclui esta passagem dizendo:

"Así, solo en las ciudades recién fundadas, creadas para residencia del príncipe o para la colonización, crearon las instituciones postmedievales un estricto orden lógico, enteramente propio.” [3]

Ora, se em todas as cidades da época mercantilista - salvo as recém-fundadas - as “formas de vida [da cidade] medieval seguiram ativas até o século XVIII", somos obrigados a no mínimo relativizar, talvez mesmo deixar em suspenso, a proposição original de que “tanto a forma quanto o conteúdo da vida urbana foram radicalmente alterados pela “nova economia do capitalismo mercantilista” etc.

Com sua lógica irretocável, a citação acima nos alerta para uma interpenetração de épocas históricas, em ambas as direções. Assim como “certos aspectos da cultura humana podem continuar existindo mesmo quando a totalidade em que outrora prosperaram já deixou de funcionar” - as antigas muralhas das cidades, por exemplo, que existiram até muito depois de, nas palavras do próprio Mumford, se "terem convertido em fronteiras nacionais” dos Estados monárquicos absolutistas [4] - outros aspectos "podem ter uma existência independente antes de integrar-se no conjunto", isto é, de ter encontrado o seu lugar numa formação social madura. 

Tal me parece ser o caso do capital mercantil relativamente ao capital propriamente dito, consequentemente do papel estruturador do comércio de mercadorias nas grandes cidades europeias e capitais coloniais dos séculos XVI-XVIII relativamente à compra-venda generalizada de mercadorias, serviços e força de trabalho nas grandes metrópoles da segunda metade do século XIX.


O caso de Newcastle

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Consideremos por um momento, sob este ângulo, o que diz o geógrafo John Langton [5] sobre a organização espacial urbana de Newcastle, Inglaterra, no ano de 1665. Com base num detalhado exame estatístico dos registros do imposto sobre a propriedade urbana (Tax Assessment Return) daquele ano, uma época em que a oligarquia mercantil local desfrutava de significativas vantagens econômicas e políticas como principal fornecedora de carvão ao mercado londrino, Langton deduz que a cidade “era ainda sensivelmente setorizada por grupos ocupacionais”, com as maiores residências correspondendo aos ofícios mais prestigiosos. Embora não pudesse ser considerada multicêntrica, a cidade tampouco apresentava “um único centro ao redor do qual se distribuíam as atividades econômicas, como num central business district”. Ou seja, indústria e comércio ainda eram organicamente ligados à residência. E mesmo sendo a atividade portuária um elemento crucial de sua economia, atraindo para a beira-rio o salão da guilda mercantil, “seis dos nove mercados da cidade funcionavam, assim como as feiras semestrais, numa única praça de mercado centralmente localizada” [a single central market place of overwhelming predominance], não por acaso contígua à igreja - hoje Catedral - de São Nicolau, ponto de convergência da cidade medieval tanto pela função religiosa quanto pela relação espacial com suas portas.

Uma hipótese alternativa
Parto do que entendo por formação social feudal e capitalista:
 
"A sociedade feudal baseava-se na renda agrícola - em espécie ou tempo de trabalho nas terras do senhor e, mais tarde, também em dinheiro - imposta pela aristocracia guerreira sucessora do colonato romano e das comunidades tribais germânicas, à guisa de estabilidade e proteção, aos camponeses que ocupavam e cultivavam a terra com seus instrumentos de trabalho. A produção agrícola excedente às estritas necessidades dos servos rurais, apropriada pela nobiliarquia fundiária para seu próprio consumo, era a base da riqueza na sociedade feudal.

Em contraste, a sociedade capitalista, gestada durante séculos no seio da sociedade feudal europeia, baseia-se na produção generalizada de mercadorias por trabalhadores livres para vender, em troca de um salário, a sua força de trabalho aos proprietários das instalações, instrumentos e insumos da produção. A base da riqueza capitalista é o mais-trabalho assalariado, vale dizer o valor das mercadorias produzidas que exceda os custos totais de produção, incluídos os salários, apropriado pelos capitalistas como lucro." [6]

A cidade feudal europeia surgiu não da riqueza do comércio de longa distância, que servia primordialmente à nobreza encastelada, mas do secular desenvolvimento das forças produtivas na agricultura servil, com cujos produtos a aristocracia adquiria os bens de luxo trazidos de terras distantes pelos mercadores. [7] A riqueza mercantil impulsionou, por certo, as forças produtivas da nova economia urbana, porém muito lentamente, a partir de uma base não apenas instável devido às guerras e catástrofes naturais [8], mas também extremamente limitada: um mercado formado, de um lado, por demandantes urbanos que compravam para seu sustento uma parte ínfima da produção agrícola e, de outro, por demandantes rurais de ferramentas, utensílios domésticos, têxteis, artigos de couro etc., camponeses demasiado pobres para fazer transbordar a indústria urbana do protecionismo das guildas.

Por isso a cidade feudal europeia manteve, durante séculos, um tipo de estrutura que os historiadores modernos qualificam de multicêntrica, [9] [10] determinada pela interação espacial entre residentes ainda divididos entre a produção agrícola e a artesanal e (a) o castelo onde se exercia o poder temporal, (b) a igreja cujo pátio e imediações eram o lugar preferencial dos mercados varejistas periódicos, formais e informais, e (c) as portas para onde a passagem obrigatória de mercadores atraía armazéns, certas classes de artesãos e estalagens onde se fazia, dentre outras coisas, o comércio de atacado e de dinheiro. [11] Inexistia a própria noção de “centro urbano”. [12]

O mercantilismo, por outro lado, não era uma formação social, com um modo de produção próprio. Embora contribuindo decisivamente para impulsionar o desenvolvimento da produção capitalista - têxtil e metalúrgica, principalmente - 
nas regiões e países onde ela já emergira do artesanato feudal como manufatura, muito especialmente em Flandres, no norte da península itálica e, mais tarde, na Inglaterra, a riqueza mercantil não provinha da produção de mercadorias, mas da exploração das diferenças de preços dos excedentes de consumo das comunidades primitivas e da produção escravista, servil e despótica espalhada pelo mundo - diferenças que o desenvolvimento da produção capitalista se encarregaria, no seu devido tempo, de extinguir. Nas palavras de K Marx, “o desenvolvimento autônomo do capital comercial se apresenta na razão inversa do desenvolvimento econômico geral da sociedade. (..) Quanto menos desenvolvida é a produção, mais a riqueza monetária se concentra nas mãos dos comerciantes“. [13]

A despeito de sua longa duração, o período mercantil-absolutista foi o de uma sociedade em transição, em que formas feudais e capitalistas de organização e exploração do trabalho, portanto de criação e distribuição da riqueza e, com elas, de estruturação e apropriação das cidades, coexistiam e se interpenetravam ainda que com dinâmicas opostas:

“Essas duas formas eram tanto complementares (p. ex. quando um senhor feudal usava parte de sua riqueza para participar de empreendimentos comerciais que incluíam algum trabalho assalariado, ou quando um comerciante usava os lucros de sua atividade para estabelecer um feudo) quanto contraditórias (p. ex. quando comerciantes e senhores feudais guerreavam pelo domínio político das grandes cidades)." [14]

No que tange à sua estrutura espacial e dinâmica expansiva, e tendo em conta que a urbe carrega consigo, por definição, uma enorme força inercial relativamente às mudanças em curso na sociedade, a grande cidade mercantilista era como uma cidade feudal ampliada pela transposição de suas muralhas, adensada pelo significativo crescimento populacional vegetativo e, principalmente, migratório, [15] monumentalizada pelo fausto aristocrático e monárquico [16] e economicamente concentrada em sua ‘porta principal’ - o porto, [17] em cujas 
imediações se instalavam tanto as aduanas quanto os mercadores e artesãos - o mais das vezes em suas próprias casas -, as novas manufaturas e a ralé; um lugar urbano muito distante de poder ser chamado de “centro” - que supõe, dentre outras coisas, a separação de negócios e residências 
[18] e o claro e sistemático desenvolvimento de assentamentos residenciais pericêntricos e periféricos em bases capitalistas. Até meados do século XVIII, quando se acelera a transição da manufatura para a grande indústria e com ela a subordinação do capital de comércio, a urbe mercantilista não tinha um ‘centro’ propriamente dito: era ainda, em ampla medida, uma cidade com funções centralizadoras (palácio, sé, porto, aduana, rua ou bairro comercial) relativamente dispersas por oposição ao campo circundante e seus povoados proto-suburbanos - como a City de Londres e a Cité de Paris, recintos urbanos política, jurídica e culturalmente definidos, durante muito tempo, pelo perímetro cambiante de suas muralhas. [19]

Em Paris, que em 1800 era a segunda metrópole mais populosa da Europa, com cerca de 550 mil habitantes, a feudalidade tardia da urbe mercantil-absolutista se manifestou na construção em 1788, vale dizer em plena Revolução Industrial, de um muro chamado ‘des Fermiers Généraux’, destinado à cobrança de impostos sobre os produtos que eram trazidos à cidade. [20] 

Pode-se dizer que as muralhas das grandes cidades europeias contam, de um modo bastante peculiar, a história da lenta superação da economia e das instituições feudais - das quais eram parasitárias, cada uma à sua maneira, tanto as monarquias absolutistas quanto a burguesia mercantil [21] - pela formação social capitalista.


A renda do solo urbano
Um estudo aprofundado da transformação das rendas urbanas feudais em 
um único direito assimilável à forma-mercadoria capitalista me parece indispensável para o entendimento da 'cidade mercantilista' dos séculos XVI-XVIII como um fenômeno de transição.  

Limito-me aqui a recuperar uma observação de Mumford sobre a renda urbana na grande cidade pós-medieval, apontada por E Vance em seu clássico texto de 1971 “Land assignment in pre-capitalist, capitalist and post-capitalist cities” como o aspecto distintivo da cidade capitalista por oposição à pré-capitalista. [22] 

Embora compartilhe com Vance a concepção de “capitalismo” como “economia do dinheiro” decorrente do aumento explosivo, a partir do século XVI, da riqueza mercantil europeia, [23] consequentemente também da pequena produção artesanal e manufatureira e dos serviços pessoais, Mumford não sugere qualquer relação entre o aumento significativo das rendas urbanas nas grandes cidades comerciais do século XVII [24] e a existência, ainda que embrionária, de gradientes de preços do solo segundo a distância aos núcleos comerciais urbanos, mencionados sem referência factual por Vance como próprio da cidade capitalista nascida "em algum momento do século XVI", [25] mas somente observados, de maneira indireta - porque não era o objeto de sua análise - e ainda distante de sua forma madura, por Engels na Manchester industrial de 1845. [26]

Para Mumford se trata, essencialmente, nas grandes cidades do século XVII, do notável crescimento da população pobre e miserável combinado à peculiaridade de que a renda urbana cresce - exponencialmente - com a densidade da ocupação do solo, [27] àquela altura intensificada pela prática persistente da construção, ao redor das cidades, de muros destinados à defesa e outros fins. [28] Para ele, 

“O alojamento de grande parte da população - e não apenas mendigos, ladrões, trabalhadores ocasionais e outros párias - em cortiços e favelas foi a modalidade característica do crescimento urbano no século XVII”. [29]

*
Conclusão
O exposto até aqui sugere que o capital mercantil não trouxe consigo forças determinantes de um processo de estruturação urbana que lhe fosse próprio, distinto em forma e conteúdo tanto da cidade feudal como da capitalista.  

Foi somente com o pleno desenvolvimento da indústria capitalista em meados do século XIX, [30] subordinando por completo ao seu ciclo reprodutivo o comércio de varejo e atacado, nacional e internacional, que as cidades ganharam uma dinâmica espacial realmente nova: a expansão radioconcêntrica desigual, manifestação urbana da natureza expansiva desigual do próprio capital.

Impelida pela necessidade incontornável de redução da distância-custo entre os agentes envolvidos na compra-venda generalizada de mercadorias, serviços e força de trabalho que agora abarcava compulsoriamente a virtual totalidade da população urbana, e pela resultante competição espacial arbitrada pela renda da terra, a revolução da centralidade, pode-se dizer, é a marca historicamente distintiva do advento da cidade capitalista.

2025-04-22

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NOTAS

[1] 
 MUMFORD L,  La Ciudad en la Historia. Logroño (Esp): Pepitas de calabaza Ed., 2012, Cap. XII, La Estructura del Poder Barroco, p. 579

[2] Idem, p. 577

[3] Idem, p. 577

[4] Idem, p. 614

[5] LANGTON J, “Residential patterns in pre-industrial cities: some case studies from seventeenth-century Britain”. Transactions of the Institute of British Geographers No. 65 (Jul 1975), The Royal Geographical Society, pp. 1-27.

[6] “A renda da terra e a cidade feudal: notas”. À beira do urbanismo (blog), 26-11-2024, por Pedro Jorgensen
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2024/11/a-renda-da-terra-e-cidade-feudal-notas.html

[7] “Os habitantes das metrópoles comerciais importavam de países mais ricos mercadorias refinadas e artigos de luxo caros, alimentando, assim, a vaidade dos grandes proprietários fundiários, que, com grande avidez, compravam essas mercadorias e as pagavam com grandes quantidades de produtos naturais de suas propriedades. [SMITH Adam (1776), Wealth of Nations. Londres, Aberdeen, 1848], livro III, cap. 3 p. 267, cit.em Marx K, O Capital, Livro III Boitempo cap 20 - Considerações Históricas Sobre o Capital Comercial, Nota 47]

[8] “Entre ese resurgimiento [do século XII] y el resurgimiento clásico del siglo XV había tenido lugar un gran desastre natural: la Peste Negra del siglo XIV, que eliminó entre una tercera parte y la mitad de la población, según los cálculos más moderados.” MUMFORD L,  La Ciudad en la Historia. Logroño (Esp): Pepitas de calabaza Ed., 2012, Cap. XII, La Estructura del Poder Barroco, p. 579

[9] "A cidade medieval é policêntrica. (..) O que estrutura a cidade é um certo número de lugares e monumentos que determinam até certo ponto o ordenamento das casas e das ruas e, sobretudo, a circulação. (..) Três elementos inscrevem na planta das cidades alsacianas um traço particularmente importante: o castelo senhorial, as igrejas e os mercados. Estes dois últimos elementos, aliás, estão às vezes associados. [LE GOFF J, O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes 1992, pp. 29-34.]
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3883019/mod_resource/content/1/LE%20GOFF%20jacques-o-apogeu-da-cidade-medieval.pdf

[10] “An analysis of the sample of 1665 demonstrates quite clearly, then, that (..) If it was not, perhaps, ‘many centred’, Newcastle was definitely ‘four sectored’: certainly, there was not a single ‘centre’ around which all activities were organized as they are around a central business district." [LANGTON J, “Residential patterns in pre-industrial cities: some case studies from seventeenth-century Britain”. Transactions of the Institute of British Geographers No. 65 (Jul 1975), The Royal Geographical Society, pp. 1-27].
https://www.jstor.org/stable/621831

[11] "The inn was a place in which corn might be factored, bills exchanged and bonds entered into, forwards in commodities bought and sold and information on the state of trade passed on, and as such a focus it developed and flowered between 1500 and 1700"; [Patten J, English towns, 1500-1700. Folkestone [England]: Archon Books 1978 p. 202.
https://archive.org/details/englishtowns15000000patt/page/22/mode/2up

[12] "la puerta produjo, sin normas especiales de distribución en zonas, los barrios económicos de la ciudad; y como no había solamente una puerta, la naturaleza misma del tráfico procedente de diferentes regiones tendió a descentralizar y diferenciar las zonas comerciales. Como consecuencia de esta disposición orgánica de las funciones, la zona interior de la ciudad no estaba recargada por tráfico alguno, pues solo circulaba el generado por sus propias necesidades." [destaque meu]. [MUMFORD L, op. cit. p. 512]

[13] MARX K, O Capital Livro III, Cap 20 Considerações Históricas sobre o Capital comercial.

[14] HARMAN C, “From feudalism to capitalism". International Socialism Winter 1989, pp. 35–87.

[15] “En tanto que la ciudad de viejo estilo estaba dividida en manzanas y plazas, y luego rodeada por una muralla, la nueva ciudad fortificada estaba proyectada ante todo como fortificación, y la ciudad propiamente dicha debía caber dentro de esta camisa de fuerza. (..) De hecho, el hacinamiento se había iniciado en las capitales ya antes del siglo XVII. (..) Pero, en el siglo XVII, estas prácticas se universalizaron: se inició la construcción sistemática de altos edificios de viviendas, que tenían cinco o seis pisos en la vieja Ginebra o en París, y a veces ocho, diez o más en Edimburgo." [MUMFORD L, op.. cit. pp. 600-602]

[16] "La mayoría de los palacios renacentistas de Florencia fueron construidos en angostas calles romanas y medievales." [MUMFORD L, op.. cit. p. 585]

[17] “El significado original de «puerto» deriva de este portal [medieval]; y a los mercaderes que se establecían en este «puerto» se les solía llamar «porteros», hasta que transmitieron el nombre a sus sirvientes”. [MUMFORD L, op.. cit. p. 512]

[18] "(..) nesta fase [a cidade mercantil] a dinâmica da acumulação comercial apresenta pouca influência sobre a estruturação interna urbana. (..) observa-se apenas o surgimento de uma classe de comerciantes e (..) uma dinamização da produção de mercadorias (..) entregue a múltiplos e pequenos estabelecimentos, em geral conduzidos pela conjugação dos meios de produção nas mãos do próprio trabalhador. (..) o locus da produção e o locus da moradia tendem a confundir-se, (..) dispersos de forma mais ou menos aleatória sobre o espaço geográfico. Em outras palavras, a separação entre o local de trabalho e de residência é ainda restrita, dada a pouca concentração dos meios de produção nas mãos de capitalistas. As condições de produção e mesmo de circulação estão ainda bem descentralizadas." [SMOLKA M, “Estruturas Intra-Urbanas e Segregação Social no Espaço: elementos para uma discussão da cidade na teoria econômica”. Programa Nacional de Pesquisa Econômica - PNPE, Série Fac-Símile no. 13, Rio de Janeiro, novembro de 1983]

[19] Ver WIKIPEDIA, "Eincentes de Paris", 22-02-2025

[21] “Braudel suggests that families rarely remained in trade for more than three generations before buying their way into the old ruling class”. [HARMAN C, “From feudalism to capitalism". International Socialism Winter 1989, pp. 35–87]

[22] VANCE Jr J E (1971), “Land assignment in pre-capitalist, capitalist and post-capitalist cities”. Economic Geography 47, 101-20.
https://docs.google.com/document/d/1hY5wr5SMbC34ni3Cs9jlKGrpKEiFyfUd/edit?usp=sharing&ouid=115443038285423072431&rtpof=true&sd=true

[23] "El paso de una economía de productos a una economía de dinero (..)"; "El crecimiento de la ciudad comercial constituyó un proceso lento, pues tropezó con resistencias, tanto en la estructura como en las costumbres de la ciudad medieval; aunque sacó partido de la regularidad barroca, siendo en realidad parcialmente responsable de ella, no le servían para nada las extravagancias de la ostentación principesca. Pero el resultado final del capitalismo consistió en introducir las modalidades del mercado, en forma universal, en todos los sectores de la ciudad: en adelante ninguna parte de la ciudad sería inmune al cambio, siempre que este significara lucro. Como ya hemos visto, este cambio se inició en la ciudad medieval, con el desarrollo del comercio a larga distancia." [MUMFORD L,  op. cit., pp. .608, 684]

[24] "De hecho, el hacinamiento se había iniciado en las capitales ya antes del siglo XVII. (..) Pero, en el siglo XVII, estas prácticas se universalizaron: se inició la construcción sistemática de altos edificios de viviendas, que tenían cinco o seis pisos en la vieja Ginebra o en París, y a veces ocho, diez o más en Edimburgo. Esta presión de la competencia por el espacio obligó a aumentar los precios de la tierra en las capitales políticas. [MUMFORD L,  op. cit., pp. 601,602]

[25] “Accepting the emergence of the capitalist system some time in the sixteenth century, we should then begin to discern the changes within cities. (..) The land assignment practices may be dealt with fairly quickly. In the place of the civic and social practices of earlier times, the capitalist city came to depend particularly upon the notion of the land-rent gradient. That trend surface might center either on a single peak or upon a number of fairly similar peaks.” [VANCE Jr J E (1971), “Land assignment in pre-capitalist, capitalist and post-capitalist cities”. Economic Geography 47, pp. 107-108]

[26] “De fato, as principais ruas que, partindo da Bolsa, deixam a cidade em todas as direções, estão ocupadas, dos dois lados, por lojas da pequena e da média burguesias, que têm todo o interesse em mantê-las com aspecto limpo e decoroso. É verdade que tais lojas se relacionam de algum modo com os bairros que estão em suas traseiras (..). É o que acontece, por exemplo, com a Deansgate, que parte em linha reta da igreja velha para o sul; no princípio, é ladeada por boas lojas e fábricas; seguem-se lojas de segunda categoria e algumas cervejarias; mais ao sul, quando deixa o bairro comercial, tem pelos lados negócios mais pobres, que, à medida que se avança, tornam-se sujos e intercalados por tabernas; enfim, na extremidade sul, a aparência das lojas não permite qualquer dúvida sobre seus fregueses: operários, só operários O mesmo se passa com a Market Street, que sai da Bolsa em direção ao sudeste: de início, (..). Sei perfeitamente que essa disposição urbana hipócrita é mais ou menos comum a todas as grandes cidades; também sei que os comerciantes varejistas, pela própria natureza de seu negócio, devem ocupar as ruas principais; sei igualmente que nessas ruas, em toda parte, encontram-se edificações mais bonitas que feias e que o valor dos terrenos que as rodeiam é superior ao daqueles dos bairros periféricos. (..) em Manchester, a urbanização, menos ainda que em qualquer outra cidade, não resultou de um planejamento ou de ordenações policiais: operou-se segundo o acaso.” [ENGELS F (1845), “As grandes cidades” (2a parte - Manchester). Em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra p. 90. São Paulo: Boitempo 2008]

[27] “Lo que las compañías navieras descubrieron en el siglo XIX, con su explotación de los pasajeros de proa, ya lo habían descubierto mucho antes los propietarios de terrenos: las ganancias máximas no se obtenían facilitando comodidades de primera clase para los que podían pagarlas a buen precio, sino hacinando en tugurios a aquellos cuyos peniques eran más escasos que las libras para un rico.” [MUMFORD L,  op. cit., p. 695]

[28] "Las nuevas fortificaciones no solo alejaron demasiado de la ciudad los suburbios, los jardines y las huertas, relegandolos a distancias a las que solo podrían llegar cómodamente los ricos, que podían permitirse el lujo de andar a caballo: los espacios abiertos en el interior fueron rápidamente cubiertos por la edificación, ya que la población era expelida de las tierras adyacentes por el miedo y la ruina o bien por la presión del cercamiento y el monopolio de la tierra." [MUMFORD L,  op. cit., p. 601]

[29] "El alojamiento en tugurios de una gran parte de la población, y no tan solo de los mendigos, ladrones, trabajadores ocasionales y otros descastados, se convirtió en la modalidad característica de la ciudad en crecimiento del siglo XVII". [MUMFORD L, op. cit., p 601]

[30] "O nome que esses beneficiários dos privilégios urbanos vão usar de preferência, burgenses, apenas continuará designando uma parte da população das cidades, mas a palavra francesa que o traduz, borjois, batizará uma classe social, a burguesia, que triunfará no século XIX com o capitalismo e uma nova revolução urbana, a da cidade, nascida da revolução industrial." [LE GOFF J, op. cit., pp. 29-34.]

quarta-feira, 26 de março de 2025

O "novo marco legal do saneamento"*


G1 Globo 19-03-2025
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2025/03/19/falta-de-saneamento-basico-causa-internacao-de-mais-de-300-mil-cidadaos-em-2024-diz-estudo.ghtml

"Um estudo divulgado nesta quarta-feira (19) comprovou o tamanho de um dos maiores desafios para o Brasil: a falta de saneamento básico causou a internação de mais de 300 mil cidadãos em 2024.
O caminho da água que abastece alguns moradores de Heliópolis é tortuoso. Começa em um gato e segue com emendas cruzando córregos, ziguezagueando por muros, subindo paredes. Já o que leva os dejetos para fora das casas é bem mais direto: do cano na parede do banheiro para dentro do córrego a cada descarga. Essa arquitetura do improviso ou da necessidade resolve um problema imediato dos moradores, mas vai espalhando pelo bairro um problema ainda maior: de saúde.

O levantamento do Instituto Trata Brasil mostra que diarreias, verminoses, doenças de pele e as causadas pela proliferação de mosquitos, como dengue e chikungunya, internaram 344 mil brasileiros só em 2024. A melhora do saneamento no Brasil se arrasta. Em 16 anos, no período de 2006 a 2022, o abastecimento de água tratada cresceu apenas 4,6 pontos percentuais. A coleta de esgoto avançou 1 ponto percentual por ano. O tratamento de esgoto nem isso: 14 pontos percentuais em 16 anos. E o Brasil chegou a 2025 com quase metade da população sem coleta ou tratamento de esgoto. (..)"

2025-03-26

* Ver neste blog:

"Agora Vai", 25-06-2020
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/06/agora-vai.html

"Tempo técnico", 14-07-2020
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/07/tempo-tecnico.html

"Privatizem-se as responsabilidades", 29-07-2020
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2020/07/privatizem-se-as-responsabilidades.html

domingo, 9 de março de 2025

Apontamentos: Marshall 1897 e as economias de aglomeração


MARSHALL Alfred, "Industrial organization, continued. The concentration of specialized industries in particular localities". Em Principles of Economics - An introductory volume.  Fourth Edition. MacMillan & Co., Limited. St Martin's Street, London. New York The MacMillan Company, 1908., pp 267-77.

https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.460749/mode/1up 

  
Última edição 03-04-2025

1
Alfred Marshall (1842-1924)
Para os economistas de nossa época, Alfred Marshall é o pioneiro do estudo das economias, ou efeitos, de aglomeração, “uma das mais importantes áreas da economia urbana” segundo o verbete da Wikipedia, “geralmente tratada do ponto de vista da firma, mas também explicativa de fenômenos sociais como a concentração populacional nas cidades e grandes centros urbanos”. [1]

O texto em questão se intitula “A concentração de certos ramos da indústria em localidades específicas” - o termo ‘economias de aglomeração’ ainda não fora inventado -, Capítulo X do Livro IV de sua obra magna “Principles of Economics - An introductory volume”, publicado em Londres no ano de 1897.

Marshall o introduz explicando, nos dois últimos parágrafos do capítulo anterior, que as economias resultantes do aumento da escala de produção industrial são de dois tipos: internas, que dependem da eficiência organizacional e gerencial da própria firma, e externas, que dependem do desenvolvimento geral da indústria e provêm, muitas vezes, “da concentração de pequenas empresas de caráter semelhante em localidades específicas ou, como se costuma dizer, da localização da indústria.”[2]

Do ponto de vista empresarial, economias de aglomeração são, essencialmente, ganhos privados resultantes das vantagens proporcionadas pela vizinhança de outras empresas, tipicamente os modernos shopping-centers onde empresas se agrupam para, dentre outras coisas, dividir os custos dos serviços comuns - tal como ocorre com as famílias residentes em um condomínio de apartamentos.

No âmbito da produção, contudo, essas vantagens podem se manifestar de maneiras muito distintas, como resultado de "movimentos deliberados de grande escala", por certo, mas, de um ponto de vista histórico, como processos não planejados que, à base de “progressos quase imperceptíveis”, geram relações de complementaridade e interdependência espacial capazes de "fixar as empresas por muito tempo no mesmo lugar". [3]

Segundo Krugman, "a maior parte da literatura segue a cartilha marshalliana na questão da localização industrial". Remetendo a Hoover (1848) [3a], ele destaca três tipos de vantagens: a formação de um mercado para trabalhadores com qualificações industriais específicas; a produção de insumos especiais não comercializáveis; e a obtenção de funções de produção melhores do que as das firmas isoladas. [4] Nas palavras de Puga:

Nos últimos 30 anos, economistas urbanos puderam documentar e quantificar essas vantagens (..) relatos das causas das economias de aglomeração são tão antigas quanto a percepção de sua existência. As obras citadas de Smith e Marshall contêm discussões frequentemente citadas sobre as vantagens derivadas da maior especialização propiciada por mercados mais amplos, pelo compartilhamento de fornecedores, pela maior oferta de mão de obra e pela transmissão localizada de ideias. [4a]


2
De particular interesse para os urbanistas nesse capítulo é a notável descrição marshalliana - curiosamente nunca destacada pelos economistas, urbanos inclusive - do processo de substituição, nas grandes cidades inglesas de meados do século XIX, das fábricas até então localizadas 'centralmente', isto é, no recinto ou imediações da cidade pré-capitalista, por firmas de importação e exportação (trading houses), vistas como extensão da atividade fabril na esfera da circulação:
 
As vantagens combinadas da variedade de empregos e da localização em algumas de nossas cidades industriais é uma das principais causas de seu crescimento contínuo. Contudo, o valor das localizações centrais das grandes cidades para o comércio atacadista permite-lhes ofertar rendas fundiárias muito mais elevadas do que podem pagar as fábricas, mesmo levando-se em conta aquela combinação de vantagens. Competição similar se dá, entre empregados do setor atacadista e trabalhadores fabris, pelo espaço residencial. O resultado é que as fábricas agora se concentram não mais nas próprias cidades, mas em suas periferias e distritos industriais vizinhos. [5]

Esse processo coincidiu com uma mudança radical na composição da população urbana da Inglaterra de meados do século XIX, também descrita por Marshall na seção final do capítulo, dedicada ao exame da redução da força de trabalho agrícola.

Para Marshall, essa redução foi acompanhada, nas cidades, não tanto pelo correspondente aumento do emprego fabril, a essa altura já limitado pela intensa mecanização, quanto pela formação de um novo e significativo contingente de empregados públicos e privados, nacionais e locais - no ensino, saúde, administração, segurança, forças armadas - além de um exército de profissionais da medicina, advocacia, contabilidade, artes, engenharia em geral etc.

Dito de outra forma, uma nova classe média urbana surgiu, gerada pelo rápido aumento da riqueza do qual a exportação de capitais e o comércio com as colônias não são aspectos secundários, como se depreende, até pelo menos o ano de 1910, das áreas "Other domestic capital" e "Net foreign capital" no gráfico abaixo, extraído de Piketty. [6]


Pode-se inferir, portanto, do próprio Marshall, que a instalação central das trading houses por ele mencionada é parte de um processo muito mais amplo, que envolve a proliferação, ao seu redor, do comércio de varejo, trazendo consigo um novo contingente de trabalhadores urbanos, uma copiosa coleção de agências bancárias e uma ampla cadeia de serviços profissionais - contábeis, advocatícios, administrativos - demandados pelo atacado, pelo varejo e pelos próprios prestadores de serviços entre si; e coroando tudo isso, as bolsas de mercadorias e valores e as sedes das grandes instituições financeiras - que nas grandes cidades como Londres, Manchester e Liverpool vieram a formar hipercentros altamente especializados.

Em Hurd (1903), encontramos uma interessante descrição do caráter "derivado" da formação dos hipercentros financeiros :

Em muitas modalidades de negócios, a concentração espacial daqueles que os conduzem acaba por cristalizar-se em bolsas de mercadorias e valores, que se convertem em centro do setor [comercial] urbano. Dado que as bolsas são o resultado, não a causa, dos distritos especiais onde estão situadas, devemos olhar para trás em busca das causas da localização das diversas atividades urbanas. [7]


3
Não é outro o fenômeno histórico-geográfico que chamo de ‘revolução capitalista da centralidade urbana’, cuja matriz é a Inglaterra marshalliana, seguida de perto por outras regiões urbanas do mundo norte-atlântico (França, Países Baixos e Estados Unidos).

Aqui, a cidade capitalista se apresenta não como pano de fundo, ou cenário, deste ou daquele ‘efeito econômico de aglomeração’ associado à lucratividade de tal ou qual ramo da indústria, mas como uma nuvem, ou novelo, ela própria, de efeitos econômicos de aglomeração

Entrelaçados e superpostos no tempo e no espaço, esses efeitos se apresentam como reciproca, ainda que assimetricamente, vantajosos para os agentes individuais envolvidos na teia de interações espaciais da compra-venda generalizada de mercadorias, serviços e força de trabalho que distingue radicalmente a cidade capitalista da cidade feudal.

O capitalismo não inventou a indústria, o comércio, a renda urbana e os efeitos econômicos de aglomeração, tampouco a centralidade em geral e a urbana em particular, mas os revolucionou em benefício de sua consolidação e expansão.


4
Focados na lucratividade da empresa, os economistas em geral, a começar do próprio Marshall, parecem desconsiderar o fato de que as economias externas às empresas não poderiam existir se não resultassem em vantagens recíprocas - ainda que assimétricas, isto é, proporcionais à condição de capitalista e trabalhador / consumidor - para os agentes individuais envolvidos.

Como exemplo do caráter recíproco dos efeitos econômicos de aglomeração podemos citar, nos distritos industriais mencionados por Marshall, e por Hobson antes dele, a complementaridade entre os ramos fortemente dependentes da mão de obra masculina, como metalurgia e mineração, e o têxtil, típico empregador de mulheres e crianças, cuja ausência resultaria em “maiores custos de mão de obra para indústria pesada e menores rendimentos para as famílias trabalhadoras”. [8] [8a]

De modo análogo, a primeira das três razões identificadas por Marshall para a concentração espacial de certo tipo de empresas é, segundo Krugman, “a criação de um mercado para trabalhadores com as qualificações necessárias, reduzindo as chances de desemprego [para os trabalhadores] e de escassez de mão de obra [para as empresas]. [9]

Ainda segundo Marshall, “regiões dependentes de uma única indústria ficam mais sujeitas a crises resultantes das flutuações da demanda e do fornecimento de matérias primas”, ao passo que, nos grandes distritos industriais, “as indústrias em dificuldades momentâneas se beneficiam indiretamente da presença das outras enquanto seus empregados continuam se abastecendo no comércio local”. [10]

É significativo que Marshall, ao descrever a ‘substituição competitiva’ das indústrias centralmente localizadas pelas trading houses, não se refira às vantagens da concentração do comércio atacadista nesta parte da cidade, obviamente relacionada aos serviços aduaneiros e portuários, além dos financeiros. E também que não relacione o fato desse comércio trazer consigo uma nova camada de trabalhadores urbanos mais bem remunerados que os fabris às vantagens espaciais recíprocas da oferta de emprego para os trabalhadores e da abundância de mão de obra para as firmas.


5
Significativa, também, da contradição entre o caráter recíproco das vantagens de aglomeração e sua persistente abordagem do ponto de vista exclusivo da empresa industrial, é a ambiguidade que se observa no brevíssimo resumo marshalliano do que já dissera Hobson sobre o comércio varejista:

Até aqui discutimos a localização do ponto de vista da economia da produção. Mas há que considerar também a conveniência do consumidor. Para uma compra rotineira ele irá à loja mais próxima; mas para uma compra importante, ele optará por se dirigir a qualquer lugar da cidade onde existam lojas especializadas. Ou seja, as lojas que vendem artigos caros e opcionais tendem a se aglomerar; as que suprem as necessidades do dia-a-dia, não. [11]

À parte o fato de que as lojas que vendem bens de consumo diário também tendem a se aglomerar - em esquinas estratégicas e vias coletoras dos bairros residenciais - observe-se que Marshall, depois de assumir ter discutido até aqui a localização [da indústria] do ponto de vista da economia da produção, trata da localização do comércio varejista não do ponto de vista da 'economia do varejo', mas… da “conveniência do consumidor”.

No fim das contas, todo o parágrafo é marcado pela sugestão - não explicitada nem desenvolvida - de uma relação inextricável, como dois lados de uma única moeda, entre a localização do comércio varejista e de seus consumidores.

Muito mais sugestiva, eu diria, dos efeitos econômicos envolvidos na relação espacial reciprocamente vantajosa entre a aglomeração do varejo e o parque residencial ao seu redor, portanto de sua relevância na estruturação da centralidade capitalista, é a explicação aportada pelo economista-avaliador estadunidense Richard Hurd em 1903:

Lojistas não se aglomeram para fazer negócios entre si, mas para a conveniência dos fregueses. O principal fator de atração do núcleo varejista parece ser assegurar aos fregueses que não deixarão de encontrar o que precisam. A variedade de produtos à disposição nesse núcleo é normalmente maior do que em todo o resto da cidade, poupando aos consumidores o tempo, o trabalho e a incerteza de buscar em lojas dispersas pela cidade. E ainda que uma loja atraia o freguês e outra realize a venda, no final o intercâmbio de fregueses se compensará. [12]

Essa visão parece adequadamente resumida na abordagem do também economista Hoover, em 1948:

“as cidades (..) devem grande parte de seu crescimento às vantagens do estreito contato entre diferentes tipos de produtores e consumidores.” [13]


6
A vantagem de localização para o varejista consiste, antes de mais nada, em estar no ponto mais acessível da rede urbana, ou de uma parte dela, isto é, de menor distância-custo total de deslocamento relativamente às famílias. A probabilidade de vendas nesse ponto é maior do que em qualquer outro lugar. A vantagem de localização do varejista individual já aparece, aqui, como uma vantagem econômica de aglomeração procedente da concentração espacial não dos próprios varejistas, mas de seus recíprocos na interação espacial - as famílias ao seu redor.

Essa modalidade primária dos efeitos econômicos de aglomeração aparece descrita, como que em estágios sucessivos de desenvolvimento, nas citações seguintes, a primeira de fonte literária, a segunda de origem técnico-científica:

“Depois chegaram os americanos (..). As fazendas proliferaram, primeiro pelos vales e depois subindo pelos contrafortes, pequenas casas de madeira com telhados de sequóia, currais de estacas partidas. (..) Caminhos para as carroças substituíram as picadas, plantações de milho, cevada e trigo expulsaram a mostarda amarela. A cada 15 quilômetros, ao longo das rotas mais percorridas, surgiram um armazém e uma oficina de ferreiro, que se tornaram núcleos de pequenas cidades - Bradley, King City, Greenfield.” [13a]

“O princípio da aglomeração nasce nas aldeias rurais e povoados que vivem dos camponeses ou agricultores da região. Por isso, aos domingos, dia de descanso, o comércio e praças de mercado desses povoados se abrem para que os habitantes rurais venham comprar alimentos, insumos agrícolas e buscar serviços de saúde ou mecânica automotriz. À medida que se amplia o mercado da região, a população oferecerá mais serviços comerciais e produtos importados da grande cidade. (..) Assim se desenvolve uma cidade a partir de um pequeno povoado dotado de certa dinâmica econômica.” [13b]

E dado que a vantagem de localização para um ou dois varejistas seminais vale para outros tantos, dá-se a concentração de varejistas nesse ponto da rede urbana, que lhes proporciona dois outros tipos de vantagem econômica de aglomeração: (1) o incremento das vendas por assegurar às famílias que suas viagens não serão perdidas; e (2) o aumento da oferta de força de trabalho com o mínimo custo de deslocamento e o correspondente impacto sobre o nível dos salários.

A aglomeração do comércio de varejo e serviços pessoais cria, por sua vez, um mercado para prestadores de serviços empresariais que lhes acrescenta um novo tipo de vantagem econômica de aglomeração na forma da economia de custos de contabilidade, advocacia, operações bancárias, manutenção predial etc.


A tais vantagens econômicas de sua própria concentração espacial no que agora é um centro urbano, a aglomeração de varejistas em conjuntos comerciais exclusivos ou compartilhados com escritórios pode acrescentar o rateio de custos de infraestrutura e serviços, próprio dos arranjos condominiais.

Associadas, todas essas vantagens econômicas de aglomeração não-industrial resultam na intensa verticalização dos grandes centros urbanos capitalistas desde fins do século XIX.


7
Dentre todos os efeitos econômicos de aglomeração, ouso dizer que o mais generalizado e duradouro, e por isso mais importante, é justamente aquele que nunca mereceu tal distinção: a tendência expansiva radioconcêntrica (desigual) da cidade capitalista.

Esse efeito, cuja generalidade e duração me sugerem classificá-lo como a lei fundamental da organização urbana capitalista, deriva do fato elementar de que   

o lugar da rede urbana [em formação - ou transformação, no caso da cidade herdada do passado feudal/colonial -] que mais convém ao [comércio atacadista], ao comércio / serviços de varejo e à indústria leve é aquele que minimiza o custo agregado, direto e indireto, de deslocamento da população residente para encontrar meios de vida (mercadorias, serviços e empregos) e, por isso mesmo, barateia relativamente os salários ao mesmo tempo que promove o seu poder de compra, em quantidade e velocidade, consequentemente as vendas e os lucros. [14]

A estabilidade temporal desse efeito de aglomeração estruturador do moderno espaço urbano tem, a meu juízo, relação direta com os benefícios que ele proporciona à formação capitalista como um todo, por mim descritos em um texto anterior da seguinte maneira:

Dado que a produção de riqueza na formação social capitalista supõe, e é tanto maior quanto maior for o consumo de mercadorias, materiais e imateriais, segue-se que a aglomeração radial-periférica dos residentes urbanos ao redor da aglomeração central dos varejistas e prestadores de serviços ou, mais simplesmente, a configuração tendencialmente radioconcêntrica das cidades em expansão, é, em si mesma, um dispositivo espacial facilitador e acelerador do processo de acumulação do capital em geral, uma máquina de economia social a seu serviço, sobre a qual irá se desdobrar, diversificar e expandir - a ponto de, a partir de certo tamanho, produzir o seu contrário: vultosas deseconomias sociais - a organização espacial intrinsecamente desigual da grande metrópole contemporânea. [15]

Não fosse assim, como se explicaria a sobrevivência secular desse arranjo espacial numa formação econômica em que "tudo o que é sólido desmancha no ar"? [15a]


É no marco desse efeito de aglomeração de caráter generalizado, consideravelmente estável do ponto de vista histórico, que se desenvolve o autêntico caleidoscópio de efeitos parciais não planejados estudados pelos economistas do século XX. [15b]

Marshall considera que a longevidade de cada um desses efeitos depende das transformações mais ou menos rápidas da tecnologia das comunicações, que traduzo como elevação da força produtiva do trabalho e consequente aumento da riqueza social e dos padrões de consumo pela via da redução das distâncias:

Tudo o que promove o barateamento da comunicação, ou que facilita o livre intercâmbio de ideias entre lugares distantes, modifica a ação das forças determinantes da localização das indústrias. [16]

E ele me parece ter aqui total razão, para bem e para mal. 
Para bem, como indicado acima, acelerando o ciclo da reprodução do capital, portanto a sua acumulação e o aumento generalizado da riqueza social nas etapas iniciais do desenvolvimento capitalista. Para mal, trazendo consigo as manifestações urbanas das forças contraditórias, quando não  autodestrutivas, do capitalismo dos séculos XX e XXI.

Nós, urbanistas, observamos hoje com inquietude que as novas tecnologias não modificam somente “as forças determinantes da localização das indústrias”, no sentido estrito, mas também, e principalmente, as forças determinantes da localização do comércio e dos serviços, portanto do dinamismo dos centros urbanos e, com eles, das próprias cidades tais como as concebemos.

A transformação das economias em deseconomias urbanas de aglomeração não é um fenômeno novo: há muitas décadas ela se manifesta, nas grande metrópoles, como aumento exponencial do preço da terra bem localizada e urbanizada, das distâncias e do tempo perdido em deslocamentos pela população trabalhadora, do custo total dos transportes urbanos e da coleta e destinação dos resíduos sólidos, da poluição do ar e das águas etc.

Contudo, embora ainda distantes de um juízo definitivo sobre o real impacto do trabalho remoto e do comércio digital sobre a vida das metrópoles, o chamado ‘efeito donut’ [17] se nos apresenta como um novo tipo de ameaça - o abandono pelas empresas, e consequente degradação, de um significativo número de edificações comerciais de grande porte, de altíssimo valor fiscal, inaproveitáveis para a habitação em geral e menos ainda para a habitação social; ameaça, numa palavra, de desertificação ou, no melhor dos casos, de precarização em larga escala dos centros das grandes metrópoles.

O esvaziamento dos grandes centros urbanos foi uma hipótese bastante difundida com a chegada, na última década do século XX, da economia digital - que cresceu desde então em ritmo exponencial. Contudo, o "efeito donut" só foi percebido 30 anos depois por força da epidemia de Covid-19, uma circunstância catastrófica externa à vida das cidades. O que me leva a concluir com três indagações. 

Estaríamos no limiar de uma crise generalizada da centralidade urbana capitalista? Seria a crise atual o efeito de vantagens econômicas de desaglomeração para empresas imersas na economia digital? Estarão os grandes centros urbanos irremediavelmente condenados à “síndrome de Detroit”?

2025-03-09
____
[1] WIKIPEDIA, "Economies of Agglomeration" 08-02-2025.
https://en.wikipedia.org/wiki/Economies_of_agglomeration

[2] MARSHALL A, Principles of Economics - An introductory volume. Fourth Edition. MacMillan & Co., Limited. St Martin's Street, London. New York The MacMillan Company, 1908., pp 267-77.
https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.460749/mode/1up

[3] Idem. 

[3a] HOOVER E M (1948), The Location of Economic Activity. New York: McGraw-Hill, 1948. Chapter 8. The Economic Structure of Communities, p. 116-144
https://docs.google.com/document/d/1MYIFm6SNi-8PEQkdem1cgTB3wxyfT7NeiG4R1QY7ggc/edit?usp=sharing

[4] KRUGMAN P, "Increasing Returns and Economic Geography". The Journal of Political Economy, Vol. 99, No. 3. (Jun., 1991), pp. 483-499.
https://www.jstor.org/stable/2937739

[4a] PUGA D, “The magnitude and causes of agglomeration economies”. Journal of Regional Science Vol. 50, No. 1, 2010, pp. 203–219
https://d1wqtxts1xzle7.cloudfront.net/36847516/the_magnitude_and_causes_of_agglomeration_economies-libre.pdf

[5] MARSHALL A, op.cit.

[6] PIKETTY T, O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca 2014, p 118 

[7] HURD R M, Principles of City Land Values. New York: Record and Guide, 1903, p. 83
https://archive.org/details/principlesofcity00hurd

[8] MARSHALL A, op.cit.

[8a] O pequeno aumento dos rendimentos familiares em troca do significativo aumento da taxa de exploração do trabalho, neste caso, faz lembrar o atualíssimo barateamento da habitação centralmente localizada em troca da redução da metragem, que aumenta substancialmente o preço / aluguel da fração ideal correspondente a cada m2 privativo, portanto a rentabilidade do negócio.

[9] KRUGMAN P, op. cit.

[10] MARSHALL A, op.cit.

[11] MARSHALL A, op.cit.

[12] HURD R M, op.cit. Cap VI

[13] HOOVER E M, op. cit.

[13a] STEINBECK J (1952), A Leste do Éden - V. 1. São Paulo: Abril Cultural 1984, p.17

[13b] BORRERO OCHOA O, Economía Urbana y Plusvalia del Suelo. Bogotá: Bhandar Editores 2018, p. 65.

[14] “A renda da terra e a organização espacial urbana: notas”. À beira do urbanismo (blog) 14-08-2024, por Pedro Jorgensen (editado 09-03-2024)
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2024/08/

[15] “Distância, aglomeração, centralidade: uma hipótese (2)”. À beira do urbanismo (blog) 28-01-2024, por Pedro Jorgensen.
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2024/01/distancia-aglomeracao-centralidade-uma.html


[15a] Título do livro de Marshall Berman, de 2007, inspirado na frase “Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.”, do Manifesto do Partido Comunista escrito por K Marx e F Engels em 1848.

[15b] Assim como todos aqueles nascidos de "movimentos deliberados de grande escala" antecipados por Marshall, como os modernos distritos industriais, os shopping centers e as 'novas centralidades' urbanas do terceiro quarto do século XX, tão bem exemplificadas por La Défense, em Paris, e Canary Wharf, em Londres.

[16] MARSHALL A, op.cit.

[17] “Donut effect”, ou “efeito rosquinha”, é o nome atribuído pelos economistas Arjun Ramani e Nicholas Bloom, da Universidade de Stanford, à notável queda dos preços do solo nos grandes centros dos Estados Unidos, e correspondente aumento dos preços suburbanos ocasionados, primordialmente, pela maré do trabalho remoto durante a epidemia de Covid-19. Ver RAMANI A e BLOOM N, “The donut effect: How COVID-19 shapes real estate”. Institute for Economic Policy Research, January 2021.