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Já numa periodização baseada nos ciclos geralmente reconhecidos pela literatura econômica, a cidade desse período de mais ou menos três séculos haveria de ser classificada como ‘mercantilista’. É o caso da urbe colonial latino-americana, nascida da revolução do comércio mundial associada às grandes navegações do século XVI. E não poderia ser diferente, uma vez que inexistiu nesse âmbito a cidade feudal - as cidades pré-colombianas e seus regimes sociais foram ambos destruídos pelos colonizadores espanhóis - e o capitalismo europeu ainda se movia de gatinhas.
Cabe, no entanto, perguntar: não sendo um modo de produção, pode o mercantilismo ter gerado determinantes da estrutura urbana distintos daqueles dos modos de produção feudal-senhorial e capitalista?
A sociedade feudal baseava-se na renda agrícola - em espécie ou tempo de trabalho nas terras do senhor e, mais tarde, também em dinheiro - imposta pela aristocracia guerreira sucessora do colonato romano e das comunidades tribais germânicas, à guisa de estabilidade e proteção, aos camponeses que ocupavam e cultivavam a terra com seus instrumentos de trabalho. A produção agrícola excedente às estritas necessidades dos servos rurais, apropriada pela nobiliarquia fundiária para seu próprio consumo, era a base da riqueza na sociedade feudal.
Em contraste, a sociedade capitalista, gestada durante séculos no seio da sociedade feudal europeia, baseia-se na produção generalizada de mercadorias por trabalhadores livres para vender, em troca de um salário, a sua força de trabalho aos proprietários das instalações, instrumentos e insumos da produção. A base da riqueza capitalista é o mais-trabalho assalariado, vale dizer o valor das mercadorias produzidas que exceda os custos totais de produção, incluídos os salários, apropriado pelos capitalistas como lucro. [1]
Por isso a cidade feudal europeia permaneceu, durante séculos, confinada a uma estrutura que os historiadores qualificam de policêntrica, [4] [5] determinada pela interação espacial entre residentes ainda divididos entre a produção agrícola e a artesanal e (a) o castelo onde se exercia o poder temporal, (b) a igreja cujo pátio e imediações eram o lugar preferencial dos mercados varejistas periódicos, formais e informais, e (c) as portas para onde a passagem obrigatória de mercadores atraía armazéns, certas classes de artesãos e estalagens onde se fazia, dentre outras coisas, o comércio de atacado e de dinheiro. [6] Inexistia a própria noção de “centro urbano”. [7]
O mercantilismo não era um modo de produção, fosse de bens de consumo, de ferramentas, de serviços, de insumos, sequer de embarcações e menos ainda das edificações que são o substrato material das cidades. Embora contribuindo decisivamente para impulsionar o desenvolvimento da produção capitalista nas regiões e países onde ela já emergira do artesanato feudal como manufatura, muito especialmente na Holanda e, mais tarde, na Inglaterra, a riqueza mercantil não provinha da produção de mercadorias, mas da exploração das diferenças de preços dos excedentes de consumo das comunidades primitivas e da produção escravista, servil e despótica espalhada pelo mundo - diferenças que o próprio desenvolvimento do comércio se encarregaria pouco a pouco de extinguir. Nas palavras de K Marx, “o desenvolvimento autônomo do capital comercial se apresenta na razão inversa do desenvolvimento econômico geral da sociedade. (..) Quanto menos desenvolvida é a produção, mais a riqueza monetária se concentra nas mãos dos comerciantes“. [8]
Do ponto de vista de sua estrutura espacial e dinâmica expansiva, presumo que a grande cidade mercantilista era essencialmente uma cidade feudal ampliada pelo crescimento populacional vegetativo e migratório, monumentalizada pelo fausto aristocrático [9] e monárquico e economicamente concentrada em sua ‘porta principal’ - o porto, [10] em cujas imediações se instalavam as aduanas e os atacadistas, lugar urbano ainda muito distante de poder ser chamado de “centro”, que supõe dentre outras coisas o claro e sistemático desenvolvimento de uma "periferia": era a “cidade” por oposição ao campo circundante e seus povoados proto-suburbanos - como a City de Londres e a Cité de Paris, recintos urbanos jurídica e culturalmente definidos, durante muito tempo, pelo perímetro cambiante de suas muralhas. [11]
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A propósito, é de grande interesse a seguinte passagem de Mumford:
“Las culturas humanas no mueren en un momento dado como si fueran organismos biológicos. Aunque a menudo parecen formar un conjunto unificado, es posible que sus partes hayan tenido una existencia independiente antes de integrarse en el conjunto y, por la misma razón, tal vez aún sean capaces de seguir existiendo cuando ya ha dejado de funcionar la totalidad en que otrora prosperaron. Tal es lo que ocurrió con la ciudad medieval. Los hábitos y las formas de vida medieval seguían activos tres siglos después de su «cierre», si se considera que el siglo XVI fue ese punto decisivo. (..) Incluso en el Nuevo Mundo las más antiguas leyes medievales del mercado permanecieron en vigor en las ciudades durante el siglo XVIII. Así, solo en las ciudades recién fundadas, creadas para residencia del príncipe o para la colonización, crearon las instituciones postmedievales un estricto orden lógico, enteramente propio.” [destaques meus] [14]
Impelida pela necessidade incontornável de redução da distância-custo entre os agentes envolvidos na compra-venda generalizada de mercadorias, serviços e força de trabalho que agora abarcava a virtual totalidade da população urbana, e pela resultante competição espacial arbitrada pela renda da terra, a revolução da centralidade, pode-se dizer, é a marca historicamente distintiva do advento da cidade capitalista.
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NOTAS
[1] “A renda da terra e a cidade feudal: notas”. À beira do urbanismo (blog), 26-11-2024, por Pedro Jorgensen
https://abeiradourbanismo.blogspot.com/2024/11/a-renda-da-terra-e-cidade-feudal-notas.html
https://www.jstor.org/stable/621831